A escassez de arroz para além das chuvas no RS

É possível garantir a soberania e segurança alimentar, mas não é possível fazê-lo de mãos dadas com o agronegócio, mantendo a economia primário-exportadora como basilar para o país como todos os governos até hoje têm feito, sem exceção.

A escassez de arroz para além das chuvas no RS
Lavoura de soja no Mato Grosso - Imagem: Alf Ribeiro/Shutterstock.

Artigo de opinião por Gabriel Colombo

No “Bom dia, Presidente!” desta terça-feira (7/5), Lula disse que o governo deverá importar arroz e feijão porque os preços já estão altos e o cenário deve piorar com as chuvas no Rio Grande do Sul (RS). No mesmo dia, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, informou que o governo vai decretar uma Medida Provisória (MP) para autorizar a compra de um milhão de toneladas de arroz, com o objetivo de evitar a escassez do produto e a especulação de preço.

O problema da escassez de alimentos básicos como o arroz e feijão não é um problema conjuntural, circunscrito às chuvas no RS, nem sequer somado a outros efeitos das mudanças climáticas que afetaram a produção agrícola.

O agronegócio tem grande liberdade para determinar o que será produzido no campo brasileiro, priorizando os interesses do mercado externo, das grandes empresas do agronegócio e dos latifundiários. É uma política agrícola pautada pelo lucro e imposta pelos pacotes tecnológicos oferecidos pelos monopólios da agricultura, sem nenhuma preocupação com a soberania alimentar. O resultado são quatro décadas de redução das áreas plantadas de arroz e feijão, enquanto a soja e milho para exportação tomam conta das paisagens rurais no país.

Na safra de 2022/2023, o Brasil teve a menor área plantada de arroz e feijão dos últimos 47 anos, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), foram 1,5 milhões de hectares (ha) e 2,7 milhões de ha, respectivamente. Apesar do aumento da área na safra atual, tal redução é uma tendência histórica. Fenômeno inverso ocorre com a soja e com o milho, como pode ser visto no gráfico a seguir.

Fonte: CONAB (2024)

Para ilustrar ainda mais, é possível fazer uma comparação entre os primeiros anos da atual década (2021-2024), com os primeiros anos da década de 1980 (1981-1984), isto é, um intervalo de 40 anos (Tabela 1). Arroz e feijão sofreram uma redução da área plantada de 73% e 49,2%, respectivamente. Enquanto a soja aumentou a área plantada em extraordinários 391,4%. É absurdo. A segurança alimentar do povo brasileiro é relegada a segundo plano. A prioridade é produzir soja e milho para exportação, principalmente para servir de ração animal em outros países.

Tabela 1: Área plantada de arroz, feijão, milho e soja para períodos determinados em mil hectares

Cultura

Média anual da área plantada entre as safras de 1980/81 à 1983/84

(a)

Média anual da área plantada entre as safras de 2020/21 à 2023/24*

(b)

VAR. %

 

(b/a)

Arroz

5.849,50

1.580,50

-73,0%

Feijão

5.581,10

2.835,60

-49,2%

Milho

12.195,50

21.043,90

72,6%

Soja

8.665,40

42.584,70

391,4%

*2023/24 previsão. Fonte: CONAB (2024)

A redução expressiva das lavouras de arroz e feijão é atenuada pelo aumento da produtividade destas culturas, devido ao desenvolvimento de cultivares mais produtivas. De modo que a produção manteve-se constante em, aproximadamente, 10 milhões de toneladas de arroz e 3 milhões de toneladas de feijão por ano, apesar da redução da área plantada. Porém, a população brasileira quase dobrou no período da série histórica elaborada pela Conab (1976/77-2023/4). Portanto, hoje o país do agronegócio produz menos arroz e feijão por habitante do que há 40 anos atrás.

Fica evidente que a situação de provável escassez e aumento dos preços de dois produtos tão básicos da mesa do brasileiro não é decorrente meramente do impacto das chuvas intensas no Rio Grande do Sul, estado que é o maior produtor de arroz do país. São décadas de livre desenvolvimento dos interesses dos grandes empresários e proprietários de terras na agricultura, com apoio do Estado brasileiro, independente dos governos, desde a Ditadura Militar ao terceiro governo Lula.

Mesmo políticas fundamentais para a garantia do abastecimento e controle de preços, como os estoques públicos da Conab foram liquidados. Desde o final do primeiro governo Dilma, os estoques de alimentos estão sendo minguados. Como resultado, em 2016 o estoque público de feijão foi zerado e o estoque de arroz ficou reduzido a 100 mil toneladas, chegando a zero em 2023. Lula está há 16 meses no governo e não houve nenhuma alteração no volume dos estoques de arroz e feijão. É importante frisar que tal política é fundamental para garantir, por uma lado, o preço de compra aos agricultores familiares e, por outro lado, para assegurar o abastecimento interno, reduzindo os riscos de escassez e especulação. A tonelada de arroz que será importada poderia ser suprida pelos estoques reguladores. Considerando somente o século XXI, os estoques de arroz foram superiores a uma tonelada nos anos 2001, 2002, 2006, 2007, 2008, 2011, 2012 e 2013.

"Eles não usam Black-tie" (1981); direção de Leon Hirszman.

Agora, para enfrentar a raiz do problema é preciso tocar nos privilégios do agronegócio. Sem reverter o quadro de hegemonia da produção agropecuária pautada pelo lucro e pela exportação de produtos primários, não é possível garantir soberania e segurança alimentar para o povo brasileiro. Para acabar com a fome, não bastam políticas redistributivas nem isenções tributárias da cesta básica, por mais importantes que sejam. É preciso intervir na produção, propostas não faltam para fazer isso desde já, para citar algumas: determinar áreas mínimas de plantio de alimentos fundamentais para a mesa do povo brasileiro, incentivar tais plantios com os instrumentos de financiamento agrícola, retomar a política de estoques reguladores, garantir a compra de produtos da agricultura familiar e das comunidades e povos tradicionais, acabar com aberrações como a isenção de impostos para a exportação de soja e milho em grão.

É possível garantir a soberania e segurança alimentar, mas não é possível fazê-lo de mãos dadas com o agronegócio, mantendo a economia primário-exportadora como basilar para o país como todos os governos até hoje têm feito, sem exceção.