A Ditadura militar e o imperialismo
A ditadura militar aparece, assim, como a consequência inevitável do desenvolvimento capitalista brasileiro e como uma tentativa desesperada de abrir-lhe novas perspectivas. Seu aspecto mais evidente foi a contenção, pela força, do movimento reivindicativo das massas.
Por Ruy Mauro Marini
Transcrito a partir de Subdesenvolvimento e revolução (1966), Editora Insular, 2017, p. 150-159.
No momento em que os movimentos de massa que defendem a elevação dos salários se acentuaram, a burguesia esqueceu suas diferenças internas para fazer frente à única questão que lhe pre ocupa de fato: a redução de seus lucros. Isso foi tão mais verdadeiro na medida em que não apenas a alta dos preços agrícolas – que aparecera aos olhos da burguesia como um elemento determinante nas reivindicações operárias – passou ao segundo plano, em virtude da autonomia que tais reivindicações salariais ganharam, mas também porque o caráter político que estas assumiram pôs em perigo a própria estrutura de dominação vigente no país. A partir do ponto no qual as reivindicações populares mais amplas se uniram às demandas operárias, a burguesia – com os olhos colocados sobre a Revolução Cubana – abandonou totalmente a ideia da frente única de classes e voltou-se massivamente para as hostes da reação.
Essas amplas reivindicações populares que mencionamos resultavam em grande medida do dinamismo que o movimento camponês ganhava, mas se explicavam sobretudo através do agravamento dos problemas de emprego da população urbana que a modernização tecnológica acarretara. Essa modernização, de origem estrangeira e exigindo uma qualificação da mão de obra que esta não possuía, acabou por criar uma situação paradoxal: na medida em que o desemprego da mão de obra em geral aumentava, o mercado de trabalho da mão de obra qualificada se esgotava, constituindo-se como um ponto de estrangulamento que demandava todo um programa de formação profissional – isto é, tempo e recursos – para sua superação. A força adquirida pelos sindicatos desses setores (metalurgia, petróleo, indústrias mecânicas e químicas) compensou a desvantagem criada pelo desemprego nos demais setores (construção civil, indústria têxtil), pressionando a alta conjunta de salários.
A solução imediata dada ao problema pela burguesia implicava a contenção coercitiva dos movimentos reivindicativos e uma nova onda de modernização tecnológica que, aumentando a produtividade do trabalho, permitisse a redução da participação da mão de obra na produção e, portanto, o afrouxamento da pressão que a oferta de empregos exercia sobre o mercado de trabalho qualificado. Para a contenção salarial, a burguesia necessitava criar condições que não derivavam, evidentemente, da frente operário-burguesa que o governo e o PC insistiam em lhe propor. Para renovar sua tecnologia, a burguesia já não podia contar com as parcas divisas fornecidas pela exportação e, agora, sequer com o recurso ao investimento estrangeiro.
Efetivamente, desde 1961 se torna cada vez mais sensível a resistência dos sindicatos ao processo inflacionário e verifica-se inclusive uma ligeira tendência à recuperação dos salários, ao mesmo tempo em que se acelera a transferência de recursos da indústria para a agricultura, através do mecanismo dos preços e em virtude da rigidez da oferta agrícola. As tentativas burguesas de impor uma estabilização monetária fracassam (1961 e 1963). Sua busca por fazer com que o processo inflacionário atuasse em seu benefício, através de aumentos sucessivos dos preços industriais, apenas imprimiu um ritmo mais ou menos acelerado a esse processo, em virtude das respostas imediatas que o setor comercial e agrícola e as classes assalariadas lhe deram. A consequente elevação dos custos de produção provoca quedas sucessivas na taxa de lucros: os investimentos declinam, não apenas nas empresas nacionais, mas também nas estrangeiras.
Com a recessão do investimento estrangeiro, fechava-se a porta para as soluções de compromisso que a burguesia aplicara desde 1955, ao fracassar sua primeira tentativa de promover o desenvolvimento capitalista autônomo do país. A situação que devia enfrentar agora era ainda mais grave, posto que, com o desenrolar da crise da balança de pagamentos, o ponto de estrangulamento cambial se aproximava, e isso justo no momento em que, terminado o prazo de maturação dos investimentos realizados na segunda metade dos anos 1950, os capitais estrangeiros pressionavam fortemente para exportar seus lucros. Assim, a crise cambial se traduzia na deterioração da capacidade de importar, que não apenas não podia ser eludida recorrendo aos capitais estrangeiros, como era agravada pela própria ação desses capitais. A consequência da pressão dessa pinça sobre a economia nacional era, pela primeira vez desde os anos 1930, uma verdadeira crise industrial.
Na realidade, o que estava em xeque era todo o sistema capitalista brasileiro. A burguesia – grande, média e pequena – compreendeu isso e, esquecendo suas pretensões autárquicas, bem como a pretensão de melhorar sua participação frente ao sócio maior estadunidense, preocupou-se unicamente em salvar o próprio sistema. Foi como chegou ao regime militar, implantado no dia 1º de abril de 1964.
A ditadura militar aparece, assim, como a consequência inevitável do desenvolvimento capitalista brasileiro e como uma tentativa desesperada de abrir-lhe novas perspectivas. Seu aspecto mais evidente foi a contenção, pela força, do movimento reivindicativo das massas. Intervindo sobre os sindicatos e demais órgãos de classe, dissolvendo as agrupações políticas de esquerda e calando seus órgãos de imprensa, aprisionando e assassinando líderes operários e camponeses, promulgando uma lei de greve que obstaculiza o exercício desse direito trabalhista, a ditadura conseguiu promover, pelo terror, um novo equilíbrio entre as forças produtivas. Ditaram-se normas fixando limites para os reajustes salariais e regulamentando rigidamente as negociações coletivas entre sindicatos e empresários, acarretando numa sensível redução do valor real dos salários.
Para executar essa política antipopular, foi necessário reforçar a coalizão das classes dominantes. Deste ponto de vista, a ditadura correspondeu a uma ratificação do compromisso de 1937 entre a burguesia e a oligarquia latifundiária-mercantil. Isso ficou claro quando a burguesia renunciou a uma reforma agrária efetiva, que ferisse o atual regime de propriedade de terras. A reforma agrária aprovada pelo governo militar se limitou à tentativa de criar melhores condições para o desenvolvimento agrícola, através da concentração dos investimentos e da formação de fundos para a assistência técnica, deixando as expropriações para os casos críticos de conflito pela posse da terra. Trata-se, em suma, de intensificar no campo o projeto de capitalização, o que além de exigir um prazo longo não pôde ser realizado em grande escala, em virtude do retrocesso geral dos investimentos.
É necessário, contudo, ter presente que não foi a necessidade do respaldo político do latifúndio a única causa dessa situação. A contenção salarial diminui, por um lado, o caráter agudo que a alta dos preços agrícolas tinha para a burguesia, posto que aqueles já não podem repercutir normalmente sobre o custo da produção industrial. Por outro lado, a ditadura militar passou a exercer uma vigilância estreita sobre o comportamento dos preços agrícolas, mantendo-os coercitivamente em um nível tolerável para a indústria. Finalmente, a razão determinante para o restabelecimento integral da aliança de 1937 é o desinteresse relativo da grande burguesia em relação a uma efetiva dinamização do mercado interno brasileiro. Logo voltaremos a esse ponto. Outro aspecto da atuação da ditadura militar consistiu na criação de estímulos e atrativos para os investimentos estrangeiros, principalmente aqueles provenientes dos Estados Unidos. Com a revogação de limitações à ação do capital estrangeiro – como aquelas que eram estabelecidas na lei de exportação de lucros –, a concessão de privilégios a certos grupos (como ocorreu com a Hanna Corporation) e a subscrição de um acordo de garantias aos investimentos estadunidenses, tratou-se de atrair esses capitais para o país. Simultaneamente, restringindo o crédito à produção (o que leva as empresas a buscarem o sustento do capital estrangeiro ou a quebrarem, ocasião na qual são compradas a baixos preços pelos grupos internacionais), estimulando a assim chamada “democratização do capital” (o que implica, na fase de estancamento, facilitar o acesso a pelo menos parte do controle das empresas ao único setor forte da economia, o estrangeiro), criando fundos estatais ou privados de financiamento baseados em empréstimos externos, ou tributando fortemente a folha de pagamento das empresas (o que as obriga a renovar sua tecnologia a fim de reduzir a participação do trabalho e buscar a associação a capitais estrangeiros), o governo militar promove a integração acelerada da indústria nacional à estadunidense. O principal instrumento para alcançar este objetivo foi o Programa de Ação Econômica do Governo, elaborado pelo governo de Castelo Branco para o período de 1964 a 1966. Para atrair os investidores estrangeiros, entretanto, o argumento principal esgrimido pelo governo foi a queda dos custos de produção no país, obtida através da contenção das reivindicações da classe operária.
A política de integração ao imperialismo tem um duplo efeito: aumentar a capacidade produtiva da indústria, graças ao impulso dado aos investimentos e à racionalização tecnológica, e, em virtude desta última, acelerar o desequilíbrio existente entre o crescimento industrial e a criação de empregos pela indústria. Não se trata, como vimos, apenas de reduzir a oferta de empregos para os novos contingentes que chegam anualmente, na razão de um milhão, ao mercado de trabalho: a aceleração deste desequilíbrio implica também a redução da participação da mão de obra já em atividade, aumentando fortemente a incidência do desemprego.
A integração imperialista coloca em relevo, pois, a tendência do capitalismo industrial brasileiro que o torna incapaz de criar mercados na proporção de seu desenvolvimento e, mais ainda, impulsiona-o a restringir tais mercados, em termos relativos. Trata-se de uma agudização da lei geral da acumulação capitalista, isto é, da absolutização da tendência ao pauperismo, que leva ao estrangulamento da própria capacidade produtiva do sistema, já evidenciada pelos altos índices de “capacidade ociosa” verificados na indústria brasileira mesmo em sua fase de maior expansão. O andamento dessa contradição fundamental do capitalismo brasileiro o leva à mais completa irracionalidade, isto é, à expansão da produção restringindo cada vez mais a possibilidade de criar, para ela, um mercado nacional, comprimindo os níveis internos de consumo e aumentando constantemente o exército industrial de reserva.
Esta contradição não é própria do capitalismo brasileiro, mas comum ao capitalismo em geral. Nos países capitalistas centrais, entretanto, sua incidência foi contra-arrestada de duas maneiras: pelo ajuste do processo tecnológico às condições próprias de seu mercado de trabalho e pela incorporação de mercados externos (entre eles, o próprio Brasil) a suas economias. A irracionalidade do desenvolvimento capitalista no Brasil deriva, por um lado, precisamente da impossibilidade de controlar seu processo tecnológico, uma vez que a tecnologia aqui é um produto de importação, estando sua incorporação condicionada por fatores aleatórios como a posição da balança comercial e os movimentos externos de capital; e, por outro, das circunstâncias particulares que o país tem de enfrentar para, repetindo o que fizeram os sistemas mais antigos, buscar no exterior a solução para o problema do mercado.
Na prática, isso se traduz, em primeiro lugar, no impulso da economia brasileira em direção ao exterior, no afã de compensar sua incapacidade de ampliar o mercado interno através da conquista de mercados já formados, principalmente na América Latina. Esta forma de imperialismo conduz, no entanto, a um subimperialismo. Efetivamente, não é possível para a burguesia brasileira competir em mercados já repartidos pelos monopólios estadunidenses e o fracasso da política externa independente de Jânio Quadros e João Goulart demonstra esse fato. Por outro lado, essa burguesia depende, para o desenvolvimento de sua indústria, de uma tecnologia cuja criação é privativa de tais monopólios. Não lhe resta, portanto, outra alternativa a não ser oferecer a estes uma sociedade no próprio processo de produção no Brasil, usando como argumento as extraordinárias possibilidades de lucros que a contenção coercitiva do nível salarial da classe operária contribui para criar. O capitalismo brasileiro se orientou, assim, rumo a um desenvolvimento monstruoso, posto que chega à etapa imperialista antes de ter conquistado a transformação global da economia nacional e em uma situação de dependência crescente frente ao imperialismo internacional. A consequência mais importante desse fato é que, ao contrário do que ocorre com as economias capitalistas centrais, o subimperialismo brasileiro não pode converter a espoliação que pretende realizar no exterior em um fator de elevação do nível de vida interno, capaz de amortecer o ímpeto da luta de classes. Em vez disso, devido a sua necessidade de proporcionar um sobrelucro a seu sócio maior estadunidense, tem que agravar violentamente a exploração do trabalho nos marcos da economia nacional, no esforço para reduzir seus custos de produção.
Trata-se, enfim, de um sistema que já não é capaz de atender às aspirações de progresso material e liberdade política que mobilizam hoje as massas brasileiras. Inversamente, o sistema tende a destacar seus aspectos mais irracionais, canalizando quantidades crescentes do excedente econômico para o setor improdutivo da indústria bélica e aumentando, devido à necessidade de absorver parte da mão de obra desempregada, seu efetivo militar. Tal sistema não cria, dessa maneira, tão somente as premissas para sua expansão rumo ao exterior: reforça também, internamento, o militarismo, destinado a afiançar a ditadura aberta de classe que a burguesia viu-se na contingência de implantar.
É nesta perspectiva que se há de determinar o verdadeiro caráter da Revolução Brasileira. Evidentemente, referimo-nos aqui a um processo vindouro, já que falar dele como de algo existente, na fase contrarrevolucionária que o país atravessa, não tem sentido. Identificar essa revolução ao desenvolvimento capitalista é uma falácia, similar àquela da imagem de uma burguesia anti-imperialista e antifeudal. O desenvolvimento industrial capitalista foi, na realidade, o que prolongou a vida do velho sistema semicolonial de exportação no Brasil. Seu desenrolar, no lugar de libertar o país do imperialismo, vinculou-o ainda mais estreitamente a esse sistema e acabou por conduzi-lo à presente etapa subimperialista, que corresponde à impossibilidade definitiva de um desenvolvimento capitalista autônomo no Brasil.
A noção de uma “burguesia nacional” de pouco alcance, capaz de realizar as tarefas que a burguesia monopolista não levou a cabo, não resiste, por sua vez, à menor análise. Não se trata somente de assinalar que os interesses primários desses estratos burgueses são os mesmos que os de qualquer burguesia, isto é, a preservação do sistema contra toda e qualquer ameaça proletária, como demostrou o respaldo destes estratos ao golpe militar de 1964. Trata-se, principalmente, de ver que a atuação política da chamada “burguesia nacional” expressa sua posição econômica e tecnologicamente à reçaga e corresponde a uma posição reacionária, mesmo em relação ao desenvolvimento capitalista.
O motor desse desenvolvimento está constituído, sem sombra de dúvida, pela indústria de bens intermediários e de equipamentos, ou seja, por aquele setor no qual a burguesia monopolista associada aos grupos estrangeiros reina soberana. Foram as necessidades próprias desse setor que impulsionaram o capitalismo brasileiro rumo à etapa subimperialista, único caminho que o sistema encontrou para seguir com seu desenvolvimento. A “burguesia nacional” nada tem para contrapor a esta alternativa senão uma demagogia nacionalista e populista, que apenas encobre sua incapacidade para fazer frente aos problemas colocados pelo desenvolvimento econômico.