'A crítica à homotransfobia do KKE e o papel da polêmica no MCI' (Gustavo Di Lorenzo)

Se entendemos que a questão de gênero não é secundária para nosso partido (mas estratégica), essa também não pode ser secundarizada no MCI. Assim como se entendemos que a polêmica é fundamental para nosso avanço, também o é para nosso movimento internacional.

'A crítica à homotransfobia do KKE e o papel da polêmica no MCI' (Gustavo Di Lorenzo)
"Defendo que assumamos - no nosso trabalho internacional - a busca pela vanguarda nas pautas de gênero e sexualidade, criticando as posições homotransfóbicas do KKE, de forma dura e teoricamente sólida."

Por Gustavo Di Lorenzo para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas, escrevo essa tribuna e no final trago destaques que apresentarei na etapa local às pré-teses congressuais. Sugiro que camaradas que compartilhem dessa posição levem contribuições semelhantes às suas etapas e a esta Tribuna.

Fato é que a cisão do antigo PCB se dá, entre diversos outros temas, principalmente baseada na falta de oxigenação que a polêmica traria ao PC. Avançamos, após o processo de cisão, com ganhos positivos nesse sentido: esta tribuna aberta, que garante o espaço da polêmica, e alguns esforços internos no sentido de tentar garantir o fluxo vertical e horizontal de informações e suas devidas respostas.

Se a polêmica é importante para a vida interna do PC, certamente também o é para o Movimento Comunista Internacional, nos espaços em que consideramos táticos e estratégicos. Se, segundo nossas pré-teses, acreditamos que o EIPCO (Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários) e a RCI (Revista Comunista Internacional) são os espaços estratégicos aos quais dedicaremos nossa prioridade, é fundamental que nossas contribuições a tais espaços sigam além de análises da conjuntura local e internacional e saudações. Devemos submeter outras organizações à mais rigorosa crítica que também cabe o nosso próprio movimento.

Acredito que essa proposta vai além desse tema específico, mas é a partir da posição do KKE acerca da questão LGBTI+ que proponho iniciar esse movimento.

Sobre a homotransfobia do KKE

O KKE - Partido Comunista da Grécia - é um partido marxista-leninista com projeção parlamentar na Grécia e uma importante base de apoio popular no país, principalmente se comparado ao demais Partidos Comunistas na atualidade (com exceção, claro, daqueles em países governados por PCs). Dado seu tamanho e capacidade de profissionalização, torna-se também um partido com influência no MCI, sendo inclusive citado nas nossas pré-teses como um dos partidos prioritários para "uma coordenação de ações e diálogos".

Suas posições acerca da pauta LGBTI+, porém, são conservadoras e típicas de um partido de extrema direita.

Para contextualização: em 2015, o Syriza (coligação/partido socialdemocrata que conquistou maioria no congresso grego e assumiu o governo do país entre 2015 e 2019), articulou a aprovação de uma lei que autorizou a união civil homoafetiva (não o casamento legal e nem a adoção, sendo - portanto - uma lei ainda bastante limitada). Já em 2017, por articulação também do Syriza, foi aprovada a lei que garantiu às pessoas trans o direito de retificação da documentação sem a necessidade de uma avaliação psiquiátrica. Ambas as votações tiveram a oposição de nacionalistas, centro-direita, da extrema direita e do KKE. Para justificar tais posições, o KKE publicou textos com uma ampla análise das questões, mostrando que um marxismo mal-elaborado é capaz de justificar atrocidades. Aos camaradas que não tiveram a oportunidade de conhecer essas posições, trago alguns excertos e o texto completo como referência ao final da publicação.

1.
"A aprovação da União Civil entre pessoas do mesmo sexo é defendida [pelos defensores dessa lei] em nome dos direitos humanos, com foco na garantia dos direitos individuais, inclusive os sexuais, e dos direitos das minorias. É um aspecto do conceito burguês de direitos individuais, pluralismo e direito à diversidade, à autodeterminação do corpo.

A orientação homossexual ou a alternância entre orientação homossexual e heterossexual [nesse caso, fazendo referência a bissexualidade?] é apresentada por setores de intelectuais e artistas, especialmente para os jovens, como uma forma de comportamento não convencional, dissidente e radical, como uma forma de superar percepções ultrapassadas da posição das mulheres na sociedade; de superar os padrões da sexualidade; como “forma de conflito com a autoridade, baseada na sociedade dominada pelos homens”. Projeta o conceito de que “a identidade sexual é algo fluido”, construído social e linguisticamente. Esta é a corrente filosófica do pós-modernismo e da pós-modernidade que, em última análise, nega a objetividade do sexo biológico, que é a base para uma orientação sexual predominantemente heterossexual. Argumenta que “gênero não é o que somos, mas o que fazemos”.

Ignora ou oculta os aspectos de classe que levaram às diferentes posições dos dois sexos e das classes dominantes na evolução da sociedade, desde a família comunitária primitiva na sociedade de primeira classe em diante.  (...)

Ao contornar as causas sociais que impuseram comportamentos sociais esmagadoramente diferentes entre os sexos, estas teorias levam à negação das diferenças biológicas entre homens e mulheres, negando em última análise a objetividade da identidade biológica de género. Nesta base, a ideia de que cada pessoa pertence, de forma natural e inevitável, a um género é considerada um erro. Estas teorias tornam absoluto o impacto que a sociedade tem numa série de percepções sobre o gênero (que muitas vezes atuam no sentido de legitimar a desigualdade e a discriminação contra as mulheres).

Note-se, no entanto, que estas percepções são promovidas como ensino oficial em alguns departamentos universitários, enquanto várias agências prosseguem a expansão do seu ensino para o ensino primário e secundário (o que já está a ser discutido nos órgãos educativos).

(...)

Vale a pena recordar que esta abordagem teórico-ideológica está a ser institucionalizada em vários países e através de práticas políticas específicas. A Alemanha reconhece desde 2013 o “terceiro” sexo não especificado, enquanto a França reconhece desde outubro de 2015 o “gênero neutro”. O Museu Whitney de Arte Americana, nos EUA, criou banheiros “para todos os gêneros”. Num jardim de infância privado em Estocolmo, na Suécia, evitam qualquer referência aos termos feminino e masculino, para não distinguir as crianças de acordo com o seu gênero."
2.
"A oposição do KKE relativamente à extensão dos direitos à união de casais do mesmo sexo decorre da natureza e evolução da instituição familiar e do seu papel na reprodução das espécies. Um ponto de partida da nossa posição é a necessidade de uma proteção social abrangente das crianças e de garantir, tanto quanto possível – numa sociedade capitalista – as condições mais favoráveis para o seu desenvolvimento físico, intelectual e emocional. (...) Com base nestes critérios, reiteramos que não concordamos com a extensão da instituição familiar a casais do mesmo sexo, muito mais no que diz respeito ao reconhecimento institucional da possibilidade de adoção ou utilização da Reprodução Medicamente Assistida.

A origem biológica da humanidade é o resultado de uma relação sexual homem-mulher que, como tal, interessa e é regulada pela sociedade. Objetivamente uma criança criada por um casal do mesmo sexo, desde os primeiros anos determinantes da sua vida, adquire uma percepção distorcida da relação biológica entre os sexos. A correta percepção desta relação é ingrediente essencial para o seu bom desenvolvimento psicossomático e social.

(...) O desenvolvimento das funções mentais de uma criança durante o processo indireto de assimilação dos valores predominantes em um determinado período histórico se dá por meio dos contatos sociais diretos da criança com os adultos. Na continuação, estes são assimilados em sua consciência. Portanto, toda a família, a família alargada, os amigos, a escola e o ambiente social têm um impacto.”
3.
“Em resumo, o KKE considera que a orientação sexual é uma questão privada, tal como a união civil. A orientação sexual, as relações sexuais ou a satisfação sexual não produzem direitos sociais. A institucionalização da união civil para casais do mesmo sexo é essencialmente uma extensão da instituição familiar a estes casais. A experiência de outros países mostra que quando um acordo de coabitação ou casamento gay foi legislado, abriu o caminho para a adoção de crianças."

(as três citações são do texto "On The Cohabitation Agreement", de 2016, publicado pelo Departamento de Equidade da Mulher do KKE, no jornal teórico do partido e reproduzido no seu site, em tradução livre, com comentários meus entre chaves)

Acredito que os que têm contato pela primeira vez com tais formulações possam estar chocados com a leitura, dado o quão rebaixado e violento é seu conteúdo. Acredito, também, que não seja necessário nessa tribuna aprofundar os erros desse conteúdo e que camaradas mais preparados são capazes de tais elaborações.

No texto, o partido aponta também que a divisão entre "conservador" e "progressista" é uma tendência internacional, ocultando a real divisão entre burguesia e a classe trabalhadora, e que ambos - conservadores e progressistas - muitas vezes estão defendendo os interesses da burguesia. Apesar de ser uma crítica real, essa realidade não exclui o fato de que o KKE é, sim, um partido conservador, que usa um marxismo mecânico para saltos argumentativos esdrúxulos, como - por exemplo - se a crítica à binaridade entre os gêneros hoje implicasse no não reconhecimento da divisão sexual do trabalho enquanto determinante da organização da propriedade privada.

O partido grego, com essas posições acerca da identidade de gênero e da adoção de crianças por pessoas LGBTI+, faz coro com um movimento que ganha projeção na última década, com o amplo crescimento da popularidade da extrema-direita baseado nas redes sociais, fake-news e fóruns online masculinistas. Esse mesmo movimento ideológico encontrou em Bolsonaro e Trump referencias institucionais. A burguesia internacional, quando necessário, utilizou e utilizará desse movimento ideológico, fazendo avançar suas reformas e ofensivas contra a classe trabalhadora.

Apesar de propagandeado principalmente pela extrema-direita, esse movimento reverbera muito além destes, conseguindo inclusive expandir sua influência na esquerda, com o "feminismo radical" e outros movimentos supostamente ortodoxos. Vemos, também, a agenda das bancadas religiosas e de partidos da direita tradicional aderirem a essa influência, com centenas de projetos de lei antidireitos de LGBTI+ no Congresso e nas assembleias do Brasil. A igreja (principalmente as neopentecostais, mas não só essas) reverberam essa agitação às suas bases e mídias, garantindo que a agenda se reflita no seu real objetivo: um pânico moral, rompendo as barreias dos principais aparelhos ideológicos da modernidade: a escola e a família.

Polemizemos no MCI, pelo avanço do movimento

Se entendemos que a questão de gênero não é secundária para nosso partido (mas estratégica), essa também não pode ser secundarizada no MCI. Assim como se entendemos que a polêmica é fundamental para nosso avanço, também o é para nosso movimento internacional. Por isso, defendo que assumamos - no nosso trabalho internacional - a busca pela vanguarda nas pautas de gênero e sexualidade, criticando as posições homotransfóbicas do KKE, de forma dura e teoricamente sólida.

Essa polêmica tem alguns papéis que tenho como centrais, já que acredito que o KKE dificilmente mudará sua posição:

- trazer a centralidade da temática ao debate no MCI;

- diferenciação entre nossa posição e tais posicionamentos do KKE, já que em diversos momentos outras organizações utilizam da nossa aproximação com o partido grego para estender suas posições ao nosso partido;

- fazer avançar o debate teórico marxista sobre gênero, em contraponto à hegemonia liberal;

Dessa forma, defendo que aprovemos no XVII Congresso o encaminhamento de que nossa primeira contribuição à Revista Comunista Internacional seja um texto elaborado pelo nosso Organismo Central duramente crítico à posição do KKE, trazendo um contraponto classista ao texto "On The Cohabitation Agreement", de 2016, e propondo que a temática seja analisada e debatida pelos demais partidos.

Defendo, também, os seguintes destaques de adição às pré-teses congressuais, ao fim do subtema "Sobre o movimento LGBT", ou seja, após o item 107:

1 - O avanço da extrema direita na última década, principalmente com o uso das redes sociais e da disseminação de fake-news, assume como uma de suas bandeiras centrais a criação de um pânico moral fundamentado na LGBTfobia, principalmente em relação às pessoas trans. Devemos enfrentar, no âmbito nacional, a LGB e transfobia da direita, como também aquela que se infiltra nos movimentos de esquerda, através do feminismo radical.

2 - Não é só na esquerda nacional que a pauta anti-LGBT, especialmente anti-trans, se propaga. Internacionalmente, inclusive no movimento comunista, a pauta é desigualmente tratada, com partidos inclusive assumindo posições transfóbicas e violentas, como é o caso do Partido Comunista da Grécia - KKE. É nosso papel polemizar nos espaços do MCI e na sua imprensa sobre tais posições, agitando e propagandeando uma análise classista e consequente.

Saudações comunistas, camaradas.


Referência:

On The Cohabitation Agreement - KKE

https://inter.kke.gr/en/articles/On-The-Cohabitation-Agreement/