'A conta não fecha: uma penumbra reside no debate sobre setores estratégicos' (Kim)

[...] me pergunto desde a leitura de teses anteriores quais são os nossos passos diante de cada um desses setores, [...] por mais que se estude a relevância de determinadas partes da classe trabalhadora, não atingimos a frase embrionária da nossa principal tarefa de organizar uma ofensiva [...].

'A conta não fecha: uma penumbra reside no debate sobre setores estratégicos' (Kim)
"Não quero aqui instaurar uma crítica sectária de que todas as nossas tarefas e tentativas de inserção foram em vão. Pelo contrário, quero instigar a todos que tragam uma análise coletiva do que conquistamos (se é que conquistamos), e quais devem ser os nossos próximos passos para a organização de lutas."

Por Kim para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Apesar de um tema recorrente e comum à história do nosso Partido e do movimento comunista, o debate acerca da conceituação, compreensão e táticas sobre os ditos “setores estratégicos” reside em uma penumbra que “empurra com a barriga” um entendimento anacrônico sobre o assunto. Assim, escrevo esta tribuna para trazer ao debate inquietações relevantes para a construção da luta do proletariado.

Inicio o presente escrito com uma pequena observação para es leitores: apesar do meu desejo em fazer um resgate histórico preciso e mais extenso sobre o PCB e os setores estratégicos, gostaria que esta fosse uma tarefa coletivizada entre os camaradas, visto que as pouquíssimas movimentações a respeito me fazem ter a impressão de que este é um debate com aspecto de natimorto (e não o é). 

Os meus questionamentos acerca dos setores estratégicos surgiram em um período anterior ao racha. Em algumas das minhas tarefas de cunho organizativo da juventude, em 2023, me deparei com uma lista de setores estratégicos extensa, que totalizavam 15[1], para o mapeamento da atuação profissional de militantes. Desde então, mesmo lendo as teses da Juventude e do Partido, além da participação em alguns debates, nunca me pareceu coerente a compreensão do corpo militante acerca desses setores pelos mesmos motivos que ainda é difícil inferir quais são nossas prioridades. Dessa forma, lhes questiono: se não era estratégico elencar 15 setores estratégicos quando não existia uma estratégia, quais são os crivos que determinam as estratégias para esses setores na Reconstrução Revolucionária, para além de determina-los nominalmente?

Ainda que haja uma concepção geral, e não exclusiva da militância, de que setor estratégico é todo aquele setor que envolve trabalhos “essenciais à manutenção do funcionamento da economia e sociedade”, me pergunto desde a leitura de teses anteriores quais são os nossos passos diante de cada um desses setores, pois por mais que se estude a relevância de determinadas partes da classe trabalhadora, não atingimos a frase embrionária da nossa principal tarefa de organizar uma ofensiva revolucionária do proletariado, correndo o risco, inclusive, de impormos hierarquias indesejadas entre setores que não necessariamente se conflitam nessa tarefa, ao invés de organizarmos os trabalhadores de diversos setores para um único fim: construir a revolução brasileira.

Não quero aqui instaurar uma crítica sectária de que todas as nossas tarefas e tentativas de inserção foram em vão. Pelo contrário, quero instigar a todos que tragam uma análise coletiva do que conquistamos (se é que conquistamos), e quais devem ser os nossos próximos passos para a organização de lutas. Isso primordialmente pelo fato de que estamos entrando em um XVII Congresso com um caderno de teses empobrecidas, e que mais uma vez, não articulam os setores estratégicos como aliançados à nossa Estratégia e Tática. Cabe aqui trazer uma reflexão: se o setor de saúde é um setor estratégico, por exemplo, então qual é a nossa tarefa para além de recrutar trabalhadores da área? Como organizamos esses trabalhadores enquanto uma ofensiva revolucionária? Levamos em consideração que setores como o da saúde tem uma taxa elevada de profissionais mulheres, e refletimos sobre o porquê as mulheres estão comumente encarregadas dos trabalhos de cuidado? 

No que tudo isso, e um pouco mais, implicam no cerne político da nossa articulação política? Sei que são muitos questionamentos, e que estes não são debates a serem sanados permanentemente, mas por sorte somos marxista-leninistas, e antes de tudo, vale mais o materialismo histórico-dialético como o coração dos nossos métodos. Dessa maneira, trago aqui possíveis apontamentos que podem corroborar para nos tirar da inércia.

Questionar quais são os setores estratégicos pressupõe uma análise extensa do desenvolvimento do capitalismo na América Latina, e mais especificamente, no Brasil. Ainda que haja um discurso existente de que o capitalismo “falhou, falha e falhará” em um sentido de estagnação inevitável, é ingênuo acreditarmos em um fim do capitalismo por meio de sua própria insuficiência. Nos falta, antes, uma visão mais aprofundada que compreenda o processo capitalista enquanto o sistema que se alimenta e se sustenta pelas próprias contradições que impõe, estas expressas no subdesenvolvimento, nas crises econômicas cíclicas e nos governos que se popularizam por uma imposição cada vez maior das políticas de bem-estar social; fato é que, em meio a todos os colapsos, o Brasil já apresentou índices do produto global e da produção industrial que tendiam para o aumento[2]. 

Uma vez reconhecidas essas contradições, expor determinados setores como estratégicos sem ressaltar a existência de algumas transformações das relações econômicas de maneira mais panorâmica, muito afetada por movimentações políticas e sociais recentes, como a transição de governos, nos tira de um debate primordial sobre os trabalhadores, que hoje não só ocupam e também deixam de ocupar o espaço desses setores estratégicos, como também são vítimas do fenômeno que transforma qualquer serviço em mão de obra barata e precarizada, alegando uma espécie de desenvolvimento econômico supostamente mais dinâmico, mas que nada mais é do que alienação do trabalho. Do contrário, não veríamos por exemplo a quantidade escabrosa de produtores de conteúdo das áreas mais improváveis possíveis que usam as redes sociais como fonte de renda, a fim de garantir “segurança financeira” através do imperialismo disfarçado de “livre” associação.

Tomamos, então, mais uma camada de análise sobre os setores estratégicos: se estamos falando do setor de transportes enquanto um estratégico e prioritário, conseguimos reconhecer quem o compõe, para além dos rodoviários? Se reconhecemos a precarização desse setor, então os trabalhadores informais, como os motoristas e entregadores de aplicativo serão incluídos enquanto parte desse setor estratégico, ou pertencerão a uma massa amorfa de “serviços precarizados” que ignora o desmantelamento dos setores que regem a nossa economia?

Sei que estas são questões que podem parecer óbvias à princípio, mas era e ainda é muito comum a afirmação de que aqueles que formam a classe de trabalhadores precarizados são a antessala dos setores estratégicos, quando não necessariamente o é, e exercem um peso fundamental na produção nacional para o capital estrangeiro, esta uma política bastante marcante nos governos de Lula, em todos os mandatos, através por exemplo de aplicativos como os da Shein, que utiliza da mão-de-obra brasileira para deter o monopólio da indústria têxtil e do comércio.

Mais do que uma política de recrutamentos que priorize a entrada de futuros camaradas desses setores, precisamos conjuntamente nos apropriar dos estudos da economia. O Sistema Nacional de Formação Política da Juventude, já bastante desatualizado, deve ser reformulado de maneira que a Economia seja um assunto primordial no debate sobre a classe trabalhadora, sem recuar do assunto como se este fosse algo vindo do reduto dos liberais. Além disso, a estratégia da Reconstrução não se esgota nos recrutamentos, mas sim deve buscar um trabalho de organização da ofensiva do proletariado mais profunda, capazes de findar raízes através de uma articulação não só organizativa, mas também política, agitativa e propagandística, que exerça o pensamento de como atingir os setores que nos comprometemos a disputar e encabeçar a revolução. 

Por último, acredito também que se faça necessária a socialização do retrato que compõe o PCB-RR hoje. Conhecemos o nosso partido hoje, pós-cisão? De quais setores estamos distanciados, e quais estamos nos aproximando com maior clareza? Quem são os que compõe hoje a reconstrução revolucionária?

Sugestões de leitura:

BRASIL, Felipe Gonçalves; CAPELLA, Ana Claudia Niedhardt. Agenda governamental brasileira: uma análise da capacidade e diversidade nas prioridades em políticas públicas no período de 2003 a 2014. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, v. 24, n. 78, 2019.

CUEVA, Agustín. O desenvolvimento do capitalismo na América Latina.


[1]  Dado extraído de documento interno anterior ao processo de racha. Eram os setores: A. Petróleo, gás e derivado; B. Transporte e logística; C. Setor Metalúrgico; D. Construção Civil; E. Tecnologia da Informação; F. Setor portuário e aeroportuário; G. Setor Bancário; H. Setor de telecomunicações; I. Setor de educação; J. Setor de saúde; K. Setor de energia; L. Setor de saneamento; M. Setor de Serviços; N. Setor de Limpeza; O. Trabalho no campo.

[2] http://www.ipeadata.gov.br/ExibeSerie.aspx?serid=38397 

https://www.fiern.org.br/industria-brasileira-avanca-no-ranking-mundial-de-exportacoes-industriais/#:~:text=A%20participação%20do%20Brasil%20na,16ª%20posição%20do%20ranking%20mundial.