A China e o marxismo-leninismo-keynesianismo

O capitalismo chinês não só está completamente restaurado como já amadureceu ao ponto de que os capitais chineses não encontram mais locais para sua aplicação produtiva na China e precisam se expandir

A China e o marxismo-leninismo-keynesianismo
Foto de um alojamento da empreiteira China Jinjiang Construction Brazil Ltda., empresa terceirizada para a construção da fábrica da BYD em Camaçari/BA e acusada de manter 163 trabalhadores chineses em situação análoga à de escravidão.

Por Doni | Tribuna de Debates

O objetivo desse texto é fazer uma crítica ao livro “China – o socialismo do século XXI” (e à tese de que existe socialismo na China do século XXI) partindo de seus próprios pressupostos, do que nos parece ser o essencial das elaborações teóricas de Jabbour e Gabriele e do levantamento empírico que ambos fizeram sobre as transformações intensas pelas quais a sociedade chinesa passou desde 1978.

Partindo daí, traremos mais elementos para a analisar a realidade chinesa e, só então, apontar o significado dessa experiência socialista, real ou suposta, a partir da crítica da economia política marxista.

Para terminar esse preâmbulo, ressalto que o debate sobre o caráter da sociedade chinesa está longe de terminar em nosso partido e não pode ser visto como algo desimportante, uma vez que um dos estopins do processo de racha com o PCB em 2023 foi a posição furtiva de parte de seu Comitê Central de participar de um fórum internacional (a Plataforma Mundial Anti Imperialista – PMAI) que se colocava a favor do bloco russo-chinês na Guerra da Ucrânia tomando como base o suposto “anti-imperialismo” desse grupo de países.

A guerra tarifária/comercial entre EUA e China, com reflexos diretos nos custos de vida de trabalhadores brasileiros, e a presença cada vez maior de produtos e empresas chinesas em nosso país demandam uma posição firme e consequente sobre qual deve ser a postura do proletariado brasileiro e mundial em face das mudanças na correlação de forças do capitalismo imperialista e dessa potência que desponta.

Sem mais delongas, passemos à análise do livro de Elias Jabbour e Alberto Gabriele desde sua introdução.

1. China – o socialismo do século XXI

O livro é composto por três partes: uma parte inicial e teórica, a segunda parte, analisando o processo de desenvolvimento chinês desde o pós-1978, e a terceira parte, conclusiva.

Inverteremos a ordem do livro para tratar, primeiro, da realidade chinesa e, depois, da análise teórica dos autores (sem prejuízo de retomar a parte inicial do livro, quando necessário). Tomaremos como referência a versão do livro em PDF para a paginação das citações.

Além disso, tentaremos evitar uma discussão exaustiva, ponto a ponto, do que é tratado na obra: buscaremos trazer os pontos principais ali abordados e criticá-los.

1.1. O estudo da realidade chinesa pelos autores

Na segunda parte do livro o socialismo é apresentado como “um projeto de caráter desenvolvimentista e, portanto, alicerçado em um Estado com capacidade política e institucional de gerar demanda para suas empresas e utilizar seus bancos como financiadores de grandes empreendimentos” (p. 174/175). Nos parece que esse é o caráter dessas intensas mudanças sociais, de acordo com os autores.

Entre as principais medidas que colocaram o povo chinês no caminho do socialismo, indicam:

a) reformas a partir do campo;
b) formação de GCEEs – Grandes Conglomerados Empresariais Estatais;
c) a criação de um forte (e concentrado) sistema financeiro nacional;
d) a criação e atuação da SASAC – Comissão de Supervisão e Administração de Ativos do Estado.

Ainda na introdução à segunda parte, mostram que é uma característica da “formação econômico-social de orientação socialista” a dependência por parte do setor privado da geração de impulsos pelo setor público da economia (p. 175), ou seja, “que a dominância do setor público da economia se expressa pela capacidade de geração de demanda para os outros setores da economia, sobretudo o privado”.

Em razão disso (p. 196), “apesar de concentrar em suas mãos “apenas” 30% das propriedades, ainda assim o Estado chinês tem um controle maior da riqueza nacional do que alguns países ocidentais na “era de ouro do capitalismo” (1950-1980).”

1.1.1. Reformas a partir do campo

O contexto pré-1978 é bastante diferente da atualidade mais dinâmica da economia chinesa (hoje, cerca de 66% da população chinesa é urbana – National Bureau Statistics of China, Anuário Estatístico de 2024). Naquele momento, cerca de 80% da população vivia em áreas rurais (p. 198).

Ainda (p. 196):

(...) nos anos pré-reformas prevaleceu um grande compromisso com o igualitarismo típico do camponês asiático e o princípio socialista de distribuição em concordância com o trabalho em nível local. Esse compromisso se manifestou em uma estrutura de “planificação central”, cujo braço produtivo eram as grandes empresas públicas e coletivas, e estendia-se à quase totalidade da economia.

Os autores propõem que Deng Xiaoping percebeu (p. 197) que os camponeses seriam o grande motor das reformas econômicas, que, para eles, concentrar-se-ia no “estabelecimento de um sistema de abastecimento capaz de superar a era da escassez na produção de alimentos e, ao mesmo tempo, garantir condições mínimas para o surgimento de um amplo mercado de consumo de bens manufaturados.

Para tanto, iniciou-se um grande processo de descoletivização da propriedade, deslocando o núcleo da organização empresarial da comuna rural para a unidade familiar (p. 198). A partir daí, puderam ser firmados contratos de responsabilidade entre o Estado e famílias camponesas, por meio dos quais era permitido às famílias que comercializassem os excedentes de produção se entregassem certa quota dela ao Estado.

Esse processo é comparado à chamada “via americana” (alusão ao desenvolvimento capitalista da sociedade estadunidense a partir da pequena propriedade rural), um “processo de industrialização apoiado em uma ampla economia de mercado que se expande do campo para as cidades” (p. 200).

Essa (entre outras) forma de propriedade, de pequenas propriedades de terra familiares, é chamada pelos escritores de “empresa não capitalista orientada para o mercado” (ENCOM), o que se deve ao fato de “o Estado não ter passado os direitos de propriedade para os agricultores, que, portanto, são concessionários. Essas concessões iniciais eram de quinze anos e, desde então, têm sido renovadas” (p. 221), sendo que essa característica de a propriedade da terra se manter estatal, e não a de sua produção ser destinada ao mercado, seria a característica determinante dessa forma de produção.

Entretanto, desde 1978, o caráter dessas pequenas propriedades rural vem mudando. Embora a propriedade rural continue estatal, passou-se a permitir novas formas de contratos de responsabilidade entre as famílias e o Estado que possibilitam transferir essa concessão de uso ou mesmo usá-la como garantia para empréstimos bancários (p. 205) – negociá-la. Passou-se a estimular a cooperativização ou mesmo “formas capitalistas” de produção na agricultura com fim de obter maior produtividade.

Esse processo, aliado ao intenso e simultâneo processo de urbanização (lembremos que 80% do país vivia no campo em 1978), não esteve livre de contradições (p. 204):

(...). A China passou pelo que [se] chamou de “epidemia” de expropriação, alimentada tanto pela expansão do mercado imobiliário (inflado pela urbanização e pela especulação) quanto pelas necessidades fiscais dos governos locais. Estima-se que um total de 70 milhões de agricultores tenham perdido suas terras em 2006 e tenham recebido uma compensação “totalmente inadequada”.

Atualmente, seja na forma de cooperativas esparsas, que abrangem dezenas de milhões de camponeses, ou de “propriedades capitalistas”, segundo os autores, a China é o país que mais subsidia sua agricultura (p. 204), o que fez em um montante de 216 bilhões de dólares de no ano de 2016. A título de comparação: o plano safra 2024/2025 entregou 475 bilhões de reais para o financiamento da agropecuária no Brasil – 400 bilhões para o latifúndio a juros negativos ou sem juros. Hoje ainda existem cerca de 200 milhões de trabalhadores na agricultura chinesa (p. 203).

Além disso, os autores indicam que a tendência (e ambição) de a China se tornar um “global player agroindustrial” pode ser exemplificada pela aquisição da empresa Syngenta (uma gigante do agronegócio) pela empresa estatal Sinochem, por 43 bilhões de dólares no ano de 2017 (p. 203).

Outro elemento dessas transformações a partir do campo foi o surgimento de TVEs (‘Township and Village Enterprises’ – empreedimentos de municípios ou vilas em tradução livre), que são, segundo os autores, espécies de ENCOMs sob o controle de dirigentes de distritos (townships) ou vilas (villages), em substituição aos administradores das comunas (p. 213).

Esses empreendimentos, de porte pequeno e de abrangência local, representavam cerca de 15% da produção industrial chinesa em 1979 (p. 213/214):

(...) respondendo tanto aos impulsos vindos das próprias aldeias, como a dispensa de mão de obra voltada para a agricultura e o aumento da capacidade de consumo das famílias aldeãs. (...) É muito evidente que as TVEs ocuparam inicialmente um nicho de mercado não explorado pelas empresas estatais. As potencialidades desse tipo de empresa, em relação às estatais chinesas da época, estão diretamente relacionadas ao seu pequeno porte, à pouca interferência estatal (o que lhes garantia maior flexibilidade) e, principalmente, à vocação de produzir diretamente para o mercado, sem mediações estatais ou obrigações de cotas, como na produção agrícola.

Como o nome sugere, “trata-se de empresas orientadas para o mercado, cujo objetivo é competir no mercado capitalista” (p. 215).

Entretanto, ao longo do tempo, essa forma de propriedade entrou em declínio (p. 217):

É certo também que não havia espaço para as TVEs competirem pelos recursos dos grandes bancos de desenvolvimento em plena reestruturação industrial na segunda metade da década de 1990, nem sob a clarificação das distintas naturezas de propriedade que emergiram na China ao longo das reformas econômicas, quando se traçou o caminho de construção de dois grandes setores não pulverizados: o estatal e o privado.

Os setores mais dinâmicos das TVEs foram absorvidos pelo setor estatal (os grandes conglomerados estatais que veremos a seguir) e os mais frágeis foram privatizados. Entretanto, certamente essa forma de propriedade cumpriu seu papel em relação ao aumento de produtividade do trabalho (absorvendo mão de obra excedente) e à impossibilidade de as grandes indústrias estatais (naquele momento, pouco produtivas) responderem à demanda criada por produtos industrializados a partir da produção agrícola mercantil, em substituição à economia de subsistência que predominava até então nas comunas rurais.

Além disso, dada a intensividade do emprego de mão de obra nessas TVEs, o que inclusive contribuiu para a manutenção do sistema hukou (p. 217: um sistema tradicional de controle de movimentação da população chinesa, ou seja, que existe desde antes da revolução chinesa) naquele momento, o processo de êxodo rural impossibilitou a continuidade dessa forma de produção, que demandava uma abundância de mão de obra.

A título de curiosidade, os autores citam alguns exemplos de expansão global de TVEs que, apesar dessas dificuldades, conseguiram sobreviver e se expandir, como a Haier (gigante privada do ramo de eletrodomésticos e eletrônicos de consumo), a Legend, que se tornou a Lenovo, (gigante privada do ramo de tecnologia) e a Galanz (gigante privada do ramo de eletrodomésticos) (p. 212).

Em linhas gerais, os sucessores das TVEs são os grandes conglomerados empresariais estatais.

1.1.2. Grandes Conglomerados Empresariais Estatais – CGEE

Na página 233 os autores trazem uma citação de Barry Naughton que, em seu entendimento, resume a situação econômica do país em 1978 (incluindo as já mencionadas TVEs):

No início da transição econômica, em 1978, a indústria chinesa era composta por milhares de organizações de propriedade pública similares. A empresa estatal tradicional – a “unidade de trabalho” integrada à burocracia governamental – dominava o cenário, como acontecia desde os anos 1950. As empresas estatais respondiam por 77% da produção industrial. “Empresas coletivas” eram fábricas que (a exemplo dos coletivos agrícolas) eram de propriedade nominal dos trabalhadores da empresa, mas, na verdade, eram controladas por governos locais ou outros órgãos estatais. Os coletivos urbanos respondiam por 14% da produção e as TVEs rurais pelos 9% restantes. A maior parte da indústria era urbana e de tamanho médio. Empresas muito pequenas eram praticamente inexistentes (menos de 5% da produção). As empresas estatais dominantes tinham muitos encargos. Como a unidade prototípica de trabalho urbano (danwei), as empresas estatais eram responsáveis pelo bem-estar, pela saúde e pela doutrinação política de seus trabalhadores. Os gerentes tinham pouca flexibilidade e magras recompensas, e eram obrigados a cumprir as metas do plano e executar vários outros comandos dados por várias partes da burocracia. Havia pouca responsabilidade ou risco.

A partir de 1992, quando a ala reformista do PCCh, liderada por Deng Xiaoping (p. 235/236), vence a batalha em torno do XIV Congresso Nacional do Partido, o processo de reformas se acelera. Em relação à grande indústria estatal existente nesse momento, os principais desafios enfrentados (p. 238) eram sua baixa produtividade (1/3 da produtividade das TVEs e 1/10 da produtividade de empresas privadas) e sua dependência direta de crédito estatal em condições mais benéficas do que as de mercado – circunstância afetada, conforme indicamos acima, pelo fato de as empresas concentrarem, a partir de suas unidades produtivas (danweis), a prestação de serviços públicos de educação, saúde, alimentação, etc.

Em linhas gerais, as transformações que afetaram grandes estatais foram (p. 239): uma dura reforma fiscal que centralizou a arrecadação de impostos, retirando boa parte da autonomia das províncias em relação a seus gastos; a redução dos subsídios estatais às indústrias públicas; a redução do espaço de crédito destinado às indústrias estatais – maior autonomia a bancos comerciais e de desenvolvimento; e medidas que significaram, na prática, o fim do sistema danwei (“O custo social dessa medida foi enorme”).

O objetivo dessas políticas era o de “segurar as grandes” (p. 240), de acordo com o Relatório sobre o Plano Quinquenal de Desenvolvimento Econômico e Social, de 1996:

A reforma institucional deve ser associada à otimização da estrutura de investimentos, a fim de apoiar seletivamente aqueles que são competitivos e fortes e permitir que os mais aptos sobrevivam e prosperem. Os fracos devem ser eliminados por fusões, aquisições e falências para melhorar a eficiência e reduzir o número de funcionários […]. Um determinado número de indústrias e grupos empresariais chave deve ser gerenciado de modo adequado para que seus capitais sejam usados para desencadear a reforma e o crescimento de outras empresas e assim impulsionar toda a economia.

Uma das grandes ferramentas desse processo foi a “corporatização” dessas estatais, que passam, a partir da “Lei das Companhias” de 1993 (pode ser acessada em: http://www.npc.gov.cn/zgrdw/englishnpc/Law/2007-12/12/content_1383787.htm), a não mais ter dirigentes eleitos de forma vitalícia e sujeitos a controles simultâneos de várias instituições burocráticas (p. 240). A gestão, profissionalizada, passa a ser centralizada por conselhos de administração, separando cada vez mais a gestão de sua propriedade da gestão política estatal – evidentemente, esse processo não foi concluído de forma rápida e sem conflitos, mas “gradualmente, um novo setor estatal foi emergindo, orientado para o mercado e sem as obrigações sociais anexas do sistema danwei”(p. 244).

De acordo com Alberto Gabriele, esse processo de reformas contribuiu com o aumento da produtividade dessas empresas (p. 241):

As empresas estatais são agora menos numerosas, mas muito maiores, mais intensivas em capital e conhecimento, mais produtivas e mais lucrativas do que no fim dos anos 1990. Ao contrário do que reza a crença popular, sobretudo desde meados da década de 2000, o desempenho dessas empresas em termos de eficiência e lucratividade se compara favoravelmente ao das empresas privadas. O subsetor controlado pelo Estado, constituído por empresas estatais em particular, com os 149 grandes conglomerados administrados pela Sasac, é claramente o componente mais avançado da indústria chinesa e aquele em que se desenvolve a maior parte das atividades internas de pesquisa e desenvolvimento.

O setor empresarial estatal foi reestruturado a partir de uma nova posição do Estado (p. 246) agora como executor e financiador em primeira e última instâncias a partir de pacotes fiscais e políticas industriais para direcionar o país no sentido da fronteira tecnológica.

Em resumo, nas palavras dos autores (p. 229/230), quais as principais características dessa estrutura produtiva baseada nos CGEE, a partir de todas essas transformações?

Ora, partindo do princípio do Estado chinês como “empreendedor em chefe”, por meio de seus GCEE, podemos inferir uma diferença fundamental entre a estrutura produtiva chinesa e a dos grandes países capitalistas no mundo. Somente na aparência essas diferenças parecem ter caráter quantitativo:

1) em nenhum lugar do atual mundo capitalista grandes e numerosas empresas estatais estão localizadas no núcleo produtivo nacional;
2) em nenhum grande país capitalista do mundo o Estado tem tamanha capacidade de coordenação do investimento por meio de empresas públicas como a China;
3) em nenhum país do mundo dezenas de empresas estatais estão a serviço de uma estratégia global que envolva investimentos da ordem de trilhões de dólares, conforme o exemplo do projeto “Um Cinturão, Uma Rota”.
4) Em nenhum país do mundo o controle sobre este tipo de ativo tem obedecido a critérios puramente políticos e estratégicos em detrimento do lucro, puro e simples.

1.1.3. O sistema financeiro nacional chinês

Dos cinco maiores bancos mundiais por número de ativos (no gráfico, em bilhões de dólares), quatro deles são bancos chineses (levantamento da “agência de classificação de crédito” Standard & Poor’s de 2024):

Note-se que esses quatro bancos chineses são maiores do que o maior banco estadunidense, o JP Morgan. Todos os bancos estatais acima indicados são o que no Brasil chamamos de “Sociedades de Economia Mista”, estatais que são administrativamente controladas pelo Estado, mas não são só compostas de capital estatal/público, parte de seu capital é privado. O capital público não é necessariamente maior ou menor que o capital privado na composição do capital total desses bancos.

De acordo com os autores, esses bancos (e o BOCOM, o quinto maior banco chinês, também de capital misto) são a base do sistema financeiro estatal chinês. Naturalmente, sua função é direcionar investimentos aos setores reputados estratégicos (p. 258), não só financiando projetos públicos e privados como sendo (o caso do China Development Bank é usado como exemplo nesse sentido) responsáveis por auxiliar políticas monetárias e fiscais estatais por meio de empréstimos anticíclicos (com o objetivo de “aquecer a economia” em momentos de crise).

Além dos bancos de desenvolvimento, os autores consideram o surgimento do mercado de ações da China “o evento mais significativo do sistema financeiro chinês na década de 1990” (p. 255). As principais bolsas de valores chinesas, Shanghai e Shenzhen, fundadas na década de 1990, estão entre as maiores do mundo e abrigavam, à época da produção da obra, cerca de três mil empresas, principalmente grandes conglomerados estatais.

Ainda, o mercado de securitização chinês – securitização é a conversão de dívidas em títulos negociáveis no mercado de capitais – é o segundo maior do mundo (p. 261), ficando apenas atrás dos EUA.

Atualizando alguns dados trazidos pelos autores (a partir das mesmas fontes), verificamos que a dívida pública interna chinesa, que era de 55,6% do PIB em 2018, passou a 84.38% do PIB em 2023 (números do FMI) e o endividamento privado do país (de acordo com a Trading Economics) foi de 157.8% do PIB em 2018 para 194.6% do PIB em 2023.

[Embora os autores tenham utilizado como base os números referentes à dívida pública do ente central, verifiquei, no link indicado, que não haviam dados disponíveis. Além disso, o índice do débito do “Governo Geral” referente ao ano de 2018, de 56.6% do PIB, faz crer que este foi a tabela indicada pelos autores (55.6% do PIB)]

Segundo os mesmos, 95% do endividamento chinês é em moeda nacional (p. 261), uma decorrência de sua soberania monetária – as reservas cambiais (reservas externas) chinesas, administradas pelo PBoC (People’s Bank of China), que cumpre a tarefa de Banco Central do País, mantêm-se num patamar de cerca de 3.2 trilhões de dólares pelos últimos 16 meses, as maiores reservas externas do planeta.

A função de todo esse aparato, que, embora possua grande participação privada em sua composição acionária, é controlado administrativamente pelo Estado chinês, é a de lançar uma série de “pacotes de estímulos fiscais para enfrentar seus desafios de formação de demanda” (p. 260/261), usando, como exemplo, um pacote de investimentos em infraestrutura no valor de R$163,8 bilhões de dólares, “como resposta à guerra comercial e tecnológica empreendida pelo governo dos Estados Unidos” – tratava-se do final do primeiro mandato de Donald Trump.

Todavia, essa atuação não se dá apenas em momentos de crise, mas de forma permanente (p. 263):

Parêntese importante: outra verdade econômica nada elementar é a centralidade do investimento público, na qual o tempo de maturação do investimento é maior e, por conseguinte, o setor privado tem pouco interesse imediato, como é o caso de empreendimentos em infraestruturas. Trata-se do típico investimento que eleva a demanda interna no curto prazo, provocando efeitos de encadeamento em toda economia, e no longo prazo gera elevação da capacidade produtiva. O próprio FMI tem incentivado esse tipo de intervenção estatal na economia (“Fiscal Monitor: Public Expenditure Reform: Making Difficult Choices”, International Monetary Fund, 2014)

1.1.4. A Comissão de Supervisão e Administração de Ativos do Estado (SASAC, em Inglês)

A SASAC é “uma típica versão chinesa de instituições coordenadoras de projetos desenvolvimentistas, porém voltada única e exclusivamente para o gerenciamento dos ativos estatais nos GCEE” (p. 278), ênfase que “garante o poder de ajustar a economia nacional aos interesses do Estado, quando necessário.”

Se as grandes estatais chinesas no período pré-1978 eram caracterizadas por estruturas gerenciais burocratizadas, cargos vitalícios e por uma supervisão ineficiente – antes da SASAC, “nove ministérios mediavam a relação entre as antigas estatais e o governo central” (p. 281) – a criação dessa comissão foi essencial para a “corporatização” ou profissionalização da gestão dessas empresas:

A corporatização das empresas estatais pode ser considerada a última e a mais importante etapa, até aqui, das reformas econômicas chinesas. Trata-se do reconhecimento do peso da lei do valor no processo de construção do socialismo sob a prevalência do metamodo de produção. (p.  281)

O número de conglomerados controlados pela comissão diminuiu de 196, em 2003, para apenas 97, em 2018. Trata-se da política de “segurar os grandes” em ação, instrumentalizada por meio de falências, fusões e aquisições entre as próprias estatais.

Os autores destacam que a SASAC teve papel imediato e importante em ao menos 3 reformas relacionadas aos GCEE (p. 282 e s/s).

A primeira delas, com o intuito de controlar esse processo de “segurar as grandes”, foi de impedir o processo de ‘management buyout’, isso é, da compra de ex-estatais por seus gerentes, uma forma de privatização direta que, na ex-URSS, enriqueceu rapidamente os gestores das antigas estatais. Essas privatizações ocorreram (p. 283), mas, segundo os autores, foram a exceção, não a regra.

A segunda reforma, “a mais importante reforma corporativa envolvendo a SASAC e os recém-formados GCEE”, foi inserir essas estatais no mercado de ações, “um instrumento essencial do socialismo de mercado chinês” (idem).

 A terceira reforma foi uma imposição de remessa de uma parte dos lucros desses conglomerados ao Estado, regulamentada em 2007. Isso ocorreu porque o governo central chinês, em 1994, decidiu que empresas não mais remeteriam nenhuma parte de seu lucro líquido ao Estado (cf. Barry Naughton, “SASAC and Rising Corporate Power in China”).

Esse processo foi feito de forma escalonada e priorizando alguns setores estratégicos (p. 284):

Por exemplo, em 2007, as empresas da Sasac foram sujeitadas a três níveis de remessas de lucros: 17 empresas, mais o Monopólio Estatal do Tabaco, deveriam remeter 10% de seus lucros para o governo central; 99 empresas, 5% de seus lucros; 32 empresas ficaram isentas por três anos; e as empresas de reserva de grãos e algodão ficaram permanentemente isentas. As Sasacs locais procederam da mesma forma em relação às suas empresas.

Um exemplo da atuação da Comissão e dos GCEE, já diretamente no contexto das guerras tarifárias que se iniciaram a partir do 2º mandato de Donald Trump, é a atuação nas bolsas de valores que foram afetadas negativamente pelas tarifas impostas pelos estadunidenses. A partir da recompra de ações de suas subsidiárias, várias dessas estatais, estimuladas pela SASAC, passaram a “injetar dinheiro na economia”, o que ajudou a recuperar os mercados em queda (cf.).

[É comum que os Grandes Conglomerados Empresariais Estatais (GCEE) se organizem de uma forma original, na qual as matrizes são empresas de capital fechado (cascas vazias), controladas pelo Estado, e as subsidiárias possuem capital aberto e são negociadas nas bolsas de valores chinesas – garantindo-se, ao mesmo tempo, controle estatal e a financeirização de seus capitais.]

Outro exemplo, também noticiado pelo Global Times (um dos jornais estatais chineses) foi um pacote de investimentos de cerca de 25 bilhões de dólares (cerca de 145 bilhões de reais) destinado às 10 províncias que mostraram melhores resultados econômicos no primeiro trimestre de 2025, para acelerar projetos relacionados à autossuficiência tecnológica.

Os autores notam que, em 2019, 82 GCEE estavam na lista das 500 maiores empresas globais por receita bruta (p. 287) e que, em 2018, desde o lançamento da SASAC, alcançaram sua melhor performance (p. 289): “a lucratividade dos GCEE cresceu 10,1% em relação a 2017. E, nos primeiros seis meses de 2019, os resultados se mostraram animadores, com alta de 5,9% nos lucros.”

1.1.5. As conclusões dos autores

Para os autores (p. 309), o socialismo de mercado surge no fim da década de 1970 como uma “nova classe de formação econômico-social”. Além da China, Vietnã e Laos são os principais exemplos dessa nova forma de organização social, embora seja bastante óbvio que a China alcançou o mais alto grau, entre os três, de desenvolvimento das forças produtivas. Ainda, defendem que (p. 310) “o socialismo com características chinesas é considerado por políticos e acadêmicos de todos os quadrantes políticos a encarnação de uma possível alternativa progressista ao capitalismo no século XXI.”.

Utilizando-se também de conhecimento produzido sobre biologia evolutiva e neurociência (cf. Capítulo 2 da obra), buscaram realizar (p. 311):

Um difícil trabalho de revisitação e reconstrução de categorias e conceitos basilares do materialismo histórico, como os de metamodo de produção, formação econômico-social e lei do valor, acabou traduzindo-se em um esforço inicial de ressignificação do próprio marxismo e do socialismo no nosso tempo presente. (grifo meu)

É importante explicar significa o que significa esse “metamodo de produção” que, certamente, para os autores, é importante para explicar o socialismo de mercado chinês.

Trata-se de uma (p. 314) “espécie de estrutura abstrata e de certa longevidade histórica” que impõe limites para o desenvolvimento dessa nova formação econômico-social que é o socialismo de mercado.

Os principais limites impostos são (p. 147):

O MMP [Metamodo de Produção] é caracterizado pela prevalência de:

1) produção de mercadorias e relações monetárias de produção e troca;
2) a vigência da lei do valor e, por praticamente todos os meios práticos, a existência de mercados;
3) extração, acumulação e investimento de excedente;
4) a existência mutuamente compatível e complementar de dois macrossetores: o macrossetor produtivo e o macrossetor improdutivo.

O MMP é baseado em relações sociais de produção e troca (RSPT) de mercado. O conjunto de restrições que constituem o MMP permanecerá operacional enquanto a produção de mercadorias persistir. Consequentemente, também a produção e a circulação de valores de troca, a existência de um excedente e de um setor produtivo e a restrição orçamentária que ele impõe ao desenvolvimento do setor improdutivo não desaparecerão tão cedo.

Para permanecer sustentável, todo sistema socioeconômico deve estar de acordo com o MMP e a LV [Lei do Valor], isto é, deve garantir que o excedente seja extraído no macrossetor produtivo e distribuído em proporções adequadas para novos investimentos no mesmo macrossetor (produtivo) e na reprodução do macrossetor improdutivo.

O macrossetor produtivo e o macrossetor produtivo são, na visão dos autores (p. 138 e s/s), elementos presentes em economias capitalistas e socialistas, e estão ligados à necessidade de “permitir o funcionamento das atividades improdutivas e atribuir-lhes financiamento (direta ou indiretamente) através de parte do excedente gerado no setor produtivo.”, ou seja, “a viabilidade do macrossetor improdutivo depende da transferência de fundos do produtivo e, portanto, está restrita à capacidade de geração de excedentes deste último.”

Isso significa que a “produção produtiva”, que “produz produtos” (valores de uso – coisas úteis a nós de forma geral) subsidiará o “macrossetor improdutivo” que consumirá esses produtos para oferecer serviços de qualquer natureza – basta pensar que para a prestação de um serviço público de saúde em uma Unidade Básica de Saúde, por exemplo, todos os produtos usados pelos profissionais (medicamentos, seringas, luvas, estetoscópios, macas, a própria estrutura física, etc.) ou mesmo utilizados para formar esses profissionais precisaram ser, em algum momento, produzidos pela indústria.

Essa necessidade de financiar serviços públicos a partir da produção industrial (sem esquecer da importância dos setores primários da economia – agricultura, extração mineral, etc.) “coloca as formações econômico-sociais de orientação socialista como Estados desenvolvimentistas, transformando a constituição do macrossetor produtivo e o planejamento econômico em duas leis objetivas desse tipo particular de formação econômico-social.” (p. 316).

Trata-se de uma posição, de acordo com os autores, corroborada por Marx e Engels (p. 331):

A perspectiva das formações econômico-sociais de orientação socialista como uma espécie de Estado desenvolvimentista segundo a famosa passagem de Marx e Engels: “O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo o capital da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível o total das forças produtivas” (Manifesto Comunista, trad. Álvaro Pina e Ivana Jinkings, São Paulo, Boitempo, 1998 [1848], p. 58).

Dadas as limitações impostas pelo metamodo de produção (p. 317), os autores propõem que respostas realistas para o problema de se conseguir financiar esses serviços públicos “passam pela possibilidade ou não de a planificação ser compatível com o mercado”.

Além dessa necessária compatibilidade com o mercado, a constituição desse “macrossetor produtivo” deve se atentar a outra lei de funcionamento nas formações econômico-sociais de orientação socialista: a impossibilidade de superar a lei de valor sob o socialismo. Inclusive (p. 317/318), “Marx já nos indicava essa impossibilidade quando aludiu à continuidade das relações de troca do modo de produção pretérito, baseado no mercado.”

Logo, concluem que se é impossível superar a lei do valor sob o socialismo, é “evidente que a planificação de uma economia de orientação socialista deverá ser compatível com o mercado.” (p. 318).

A reconstituição de mercados indispensáveis, a proteção contra interferências externas a partir da constituição de uma forte reserva cambial (a chamada “reserva externa”) e, especialmente, a criação de um sistema financeiro doméstico cujo núcleo estratégico esteja sob controle estatal são essenciais nesse processo (p. 319/320), vide a atuação dos bancos públicos de desenvolvimento que já abordamos acima: “Não existe socialismo sem grandes instrumentos estatais de intermediação financeira.”

Uma nota dos autores ressalta a importância desse sistema financeiro (p. 331):

O grau de desenvolvimento do sistema financeiro chinês e a firme proposição do governo chinês de tornar o país forte e influente nos grandes assuntos internacionais pode ser percebido no fato de a China ter se convertido no maior credor líquido do mundo. Os quatro maiores bancos do mundo em 2019 são instituições estatais chinesas.

A reconstituição de mercados indispensáveis, no pós-1978, começa pelo já abordado processo de expansão da economia de mercado pela “progressiva desagregação da economia natural de subsistência e da pequena produção mercantil” (p. 321).  Embora o Estado mantenha a propriedade da terra, seus direitos de uso passam a ser transferíveis e são, inclusive, objeto de especulação imobiliária.

Se o processo de expansão dos mercados correu com poucos sobressaltos no campo (p. 322/323), a transformação do setor industrial urbano foi bastante diferente.

Esse processo envolveu o fim de subsídios às grandes indústrias estatais, a política de “manter as grandes e deixar as pequenas”, que resultou numa drástica redução do número dessas empresas (já indicamos que os GCEE controlados pela SASAC atualmente são apenas 96), a “corporitização” de sua organização e o fim do sistema danwei que obrigava essas estatais a congregar, em suas unidades produtivas, serviços públicos básicos à população – o fim desse sistema foi particularmente cruel para com a população.

Apesar disso, explicam os autores (p. 323/324):

Esse processo, visto com o benefício da retrospectiva, foi bem-sucedido. Em grande medida, nossa opinião a respeito da atuação dos GCEE dentro dos limites impostos pelo metamodo de produção é legitimada pelo papel que esses grandes conglomerados tiveram nos pacotes fiscais executados pelo governo desde o fim da década de 1990, como núcleo duro da inovação, da ciência e da tecnologia, por sua posição global como ponta de lança do projeto chinês via o projeto Um Cinturão, Uma Rota, e por sua presença constante na lista Forbes 500, ao lado das maiores empresas do mundo.

Também, o papel da SASAC foi fundamental nesse processo a partir de sua fundação, em 2003, por se tornar uma “instituição na qual as competências estatais se fundem com os necessários componentes de mercado e geram uma estrutura meritocrática de alto nível” (p. 326) e passar a encabeçar a administração desses grandes conglomerados estatais. Trata-se de uma instituição que controlava, à época de confecção da obra, 33.5 trilhões de dólares em ativos de GCEEs.

A administração desses ativos estatais envolve processos de reestruturação contínuos. Como exemplo atual disso, podemos mencionar o anúncio da comissão, em 2025, de sua intenção de promover fusões no setor automobilístico estatal em face de práticas de competição desleal que podem, no futuro, prejudicar o desenvolvimento produtivo e tecnológico do setor como um todo.

O papel do Partido Comunista Chinês nesse desenvolvimento é o de “um ator cuja ação vai ao encontro dos interesses do povo chinês” (p. 328). O PCCh é um “gerenciador de ativos estatais do país em um ambiente jurídico e institucional completamente diferente daquele sob o capitalismo (no qual quem governa é o princípio da propriedade privada)” (idem). Isso pois “a articulação holística das relações sociais de produção e troca sob o socialismo de mercado é profundamente diferente da do capitalismo”.

Por fim, para os autores, o conjunto de elementos embrionários que se assemelham “ao prenúncio de um novo e mais avançado estágio do socialismo de mercado” (p. 330) – em linhas gerais, todas as conquistas descritas acima – traduzem uma etapa do desenvolvimento chinês que denominam de “nova economia do projetamento” (a partir da obra de Ignacio Rangel):

Nesse quadro, o projeto é o elemento tático do desenvolvimento, e a estratégia é confiada ao planejamento. Uma forma tão superior de planejamento governamental deve contar cada vez mais e corajosamente com programas e megaprojetos vastos e ambiciosos, mantendo a restrição crucial de compatibilidade de mercado (pois continua reconhecendo as limitações impostas pelo metamodo de produção). A escala e o escopo desses programas e megaprojetos são tais que eles têm um impacto não marginal no equilíbrio macroeconômico e na própria estrutura e trajetória dos mercados. Portanto, seu potencial de elevação do desenvolvimento é enorme, assim como seus riscos. Por essa razão, a China deve se envolver nesse tipo de esforço com uma cautela e uma capacidade de processamento e previsão que simplesmente não eram disponíveis no século XX.

2. Marcos teóricos utilizados pelos autores

Finda a exposição sobre a realidade chinesa e suas transformações no pós-1978, passamos à análise da parte teórica da obra, posicionada no início do livro. A nossa intenção é a de facilitar o entendimento da exposição. Creio que o benefício principal dessa abordagem é priorizar os “conceitos” que, de fato, foram utilizados ao longo da exposição sobre a realidade chinesa – o que não é o caso de tudo o que foi exposto na primeira parte da obra.

Sigamos.

Sobre o conceito de modo de produção (p. 84):

O conceito marxiano de modo de produção refere-se à forma específica de interação entre forças produtivas e relações sociais de produção que caracterizam e moldam a base material e a reprodução das civilizações humanas por períodos muito longos: “Um modo de produção é uma combinação articulada de relações e forças de produção estruturada pelo domínio das relações de produção”[Barry Hindless e Paul Hirst, Pre-Capitalist Modes of Production (Victoria, AbeBooks, 1975), p. 9.]. Portanto, modo de produção é o conceito mais crucial do materialismo histórico: “O dito de Marx: ‘As relações de produção de toda sociedade formam um todo complexo’. Esse é o ponto de partida metodológico e a chave para a compreensão histórica das relações sociais”.

Como já vimos, os autores se utilizam também do conceito de “metamodo” de produção, uma estrutura abstrata que impõe limites ao desenvolvimento dos diferentes modos de produção atuais, sejam eles capitalistas ou orientados ao socialismo.

Além disso, essa coexistência entre diferentes modos de produção, para os mesmos, pode se dar sob a forma de dominância (sujeição hierárquica) e de prevalência (sujeição econômica), dando como exemplo os estágios iniciais de desenvolvimento do capitalismo, nos quais “o capitalismo se tornou dominante na maioria dos países ora desenvolvidos em um estágio relativamente inicial, muito antes do desenrolar total do processo de ‘proletarização’” (p. 93).

Nesse sentido, o conceito de “formação econômico-social”, usado por Lênin, utilizado para estabelecer as condições sociais e econômicas específicas de cada país (p. 94), permite entender a dinâmica da coexistência desses diferentes modos de produção (onde ela ocorre), isso é, qual deles é dominante e se há um processo de transição “de um modo de produção dominante para outro”.

Nesse sentido (p. 95/96):

Em conformidade com a abordagem descrita nas seções anteriores, consideramos cada formação econômico-social um subconjunto internamente consistente, em grande parte, mas não totalmente contido e restrito por um conjunto social e econômico maior, predominante em todo o mundo, isto é, o modo de produção globalmente dominante. O primeiro corresponde à essência do conceito de modo de produção em seu sentido marxiano original, ou seja, uma forma de organização das relações de produção e troca de determinado momento histórico. É modelado predominantemente pelos países e grupos de países mais fortes e avançados e pelos interesses hegemônicos de suas classes dominantes e/ou grupos sociais. O segundo é um conceito abrangente referente ao período de longa duração, que é dominado pelo princípio da necessidade.

Um ponto muito importante é a posição dos autores sobre trabalho produtivo e improdutivo, ou seja, sobre quais tipos de trabalho têm, ou não, a capacidade de criar valor.

Antes, vale ressaltar que os mesmos sintetizam o conceito de trabalho “a qualquer atividade produtiva de um determinado tipo que visa um determinado objetivo” (p. 105).

Ainda, explicam que Marx entendia que apenas atividades “diretamente voltadas para a produção material eram realmente produtivas” (p. 106), sendo improdutivas as que pertencem ao mundo da circulação (exemplos: transporte, administração, venda, etc.), mas que possuem uma posição contrária (p. 106/107) a essa:

Em nossa opinião, essa perspectiva não é realista. Assim, no restante deste livro, não seguiremos Marx nesse ponto e consideraremos produtivas todas as atividades que produzem mais-valor – sejam elas de natureza agrícola, industrial ou de serviços, materiais ou não materiais, que pertençam à esfera da produção stricto sensu ou da circulação/distribuição. Assim, no capitalismo, todo o trabalho empregado em atividades capitalistas e geradoras de excedente é trabalho produtivo. (grifo nosso)

Por outro lado, valor, “consistentemente com a abordagem clássica, deve ser entendido como valor de troca expresso nos preços de produção”. Em outras palavras, “esses preços (depurados do impacto de choques contingentes na demanda ou na oferta por meio de uma abstração teórica e/ou por um longo processo de convergência no mundo real) são decorrentes das relações sociais de produção em condições capitalistas normais.” (p. 108). Ainda, defendem que “todo valor econômico nas sociedades humanas é, em última instância, gerado pelo trabalho” (p. 104).

Entretanto, vão além ao afirmar que, para além da sociedade capitalista, “Marx considerava a categoria de valor pertencente a qualquer sistema no qual mercadorias são produzidas para serem trocadas.” Trazem a seguinte citação de Ernesto Screpanti (Labour and Value: Rethinking Marx’s Theory of Exploitation, 2019):

(...) Marx postula um sistema hipotético de “produção em geral” – um processo de produção “comum a todas as condições sociais, isto é, sem caráter histórico” […] Essa noção de “produção em geral” se encontra em vários trabalhos, especialmente em Grundrisse e Contribuição à crítica da economia política.

No mesmo sentido (p. 125):

(...)
3) O conceito de lei do valor refere-se à lei básica do movimento que garante e restringe, na prática e de maneira lógica, a formação de preços, salários e taxas de lucro e a geração de excedentes, bem como um grau viável de estabilidade sistêmica e a reprodução simples e ampliada do modo de produção. A lei do valor caracteriza qualquer forma de produção de mercadorias que gira em torno das relações monetárias de produção e troca – essencialmente o capitalismo e o socialismo. (grifo nosso)

Em razão disso, utilizam-se dessa noção para entender como essas “leis de movimento da produção em geral” se aplicam ao socialismo, ou seja, “estamos interessados em explorar como (e se) a lei do valor se desdobra no socialismo e as diferenças (se houver) na maneira como esse processo se manifesta no capitalismo e no socialismo” (p. 109).

Em consequência, ressaltam que (p. 111):

A essência do capitalismo consiste, por definição, na competição (turbulenta) dos capitais. Assim, a lei do valor sob o capitalismo (e mesmo sob o socialismo) deve, em primeiro lugar, garantir um grau mínimo de consistência e capacidade de gerenciamento para que haja coexistência competitiva de diferentes capitais e unidade de autovalorização.

Trata-se de uma questão principal para os autores, que a reafirmam em outras oportunidades, quando, p. ex., declaram que “a vigência da lei do valor é em geral independente da estrutura dos direitos de propriedade e, portanto, constitui uma característica comum do capitalismo e do socialismo” (p. 141).

O socialismo, para os mesmos (p. 129), não deve ser caracterizado de forma ideal com base “na negação dos piores aspectos do capitalismo”, enquanto “a análise das experiências do socialismo real – com todos os seus limites e erros – são muitas vezes descartadas como desvios fatais e traiçoeiros do que deveria ser o “verdadeiro caminho”.

Isso pois o caráter do socialismo não seria o de uma sociedade completamente diferente da sociedade capitalista, mas de uma sociedade em transição para o comunismo (p. 142):

Segundo Marx e Engels, em algumas passagens, o próprio socialismo deveria ser uma espécie de transição imperfeita no caminho da humanidade em direção ao comunismo. Na verdade, a própria razão de ser do socialismo é a impossibilidade de saltar diretamente do capitalismo para o comunismo. Assim, na visão de Marx, a prevalência da lei do valor seria dominante nos estágios iniciais do socialismo e desapareceria progressivamente à medida que a sociedade se aproximasse do comunismo. No entanto, é seguro reconhecer que Marx e a maioria de seus seguidores parecem acreditar que, após uma revolução socialista, o comunismo poderia ser alcançado em um período relativamente curto de tempo (possivelmente em apenas uma geração). A experiência histórica no século XX e no início do século XXI mostrou que eles eram demasiado otimistas. (grifo nosso)

A partir disso, elencam tarefas para socialistas e comunistas (p. 133/134):

a) introduzir, expandir e generalizar as relações sociais de produção e troca típicas do modo de produção socialista com o objetivo de minimizar (e, eventualmente, em grande parte substituir) a prevalência das de tipo capitalistas. Nesse domínio, são fundamentais o aprimoramento do princípio do planejamento compatível com o mercado em relação ao laissez-faire e o princípio da minimização da relevância dos rendimentos não trabalhistas decorrentes da captura de mais-valor. (...)
b) deslocar progressivamente cada vez mais recursos para o setor improdutivo, a fim de aumentar a parcela da economia que trabalha de acordo com o princípio comunista. Esse segundo objetivo, no entanto, só pode ser perseguido dentro dos limites orçamentários impostos pelo desenvolvimento das forças produtivas. Tais limites são uma imposição do crescimento do setor produtivo. (grifo nosso)

E se até agora “as experiências de orientação socialista mais importantes e radicais originaram-se principalmente de revoluções violentas”, “esse não tem necessariamente de ser o caso no futuro, uma vez que a correlação global de forças sob o metamodo de produção mudou com a presença relativamente estável da China etc.” (p. 134).

Por outro lado, a partir dessas semelhanças, podemos ressaltar as diferenças elencadas pelos autores entre capitalismo e socialismo.

A principal delas, segundo os mesmos (p. 137/138), considerando que “a lei do valor opera de maneira fundamentalmente semelhante nos países capitalistas e nas formações econômico-sociais de orientação socialista de mercado”, é que nestas últimas “a influência do planejamento no mercado é maior do que nos países capitalistas”, embora, mesmo com uma maior influência, o planejamento “não está em posição de superar a lei do valor” – o que é consistente com a noção trazida acima de que a lei do valor não é abolida no socialismo.

Nesse sentido (p. 141/142):

As formas administrativas e outras formas de intervenção pesada do Estado na economia, contrárias aos sinais decorrentes da estrutura dos preços relativos, não devem ser a norma e não devem ser aplicadas rotineiramente ad hoc, sobretudo nas áreas de nível meso e microeconômicas. (...) Somente uma vez que o socialismo tenha atingido um grau de maturidade bastante avançado, pode-se estabelecer a primazia do planejamento em relação ao mercado – desde que permaneça compatível ex post com o mercado. (grifo nosso)

Tudo isso sem esquecer o já aludido “metamodo” de produção, uma estrutura abstrata que abrange e limita todos os modos de produção existentes na atualidade.

Entender o conceito de metamodo de produção (MMP), descrito principalmente nos capítulos 7 (O metamodo de produção) e 8 (O socialismo sob o metamodo de produção) e utilizado ao longo da obra, é central para o entendimento da mesma.

Já indicamos acima as características básicas do MMP de acordo com os próprios autores (cf. p. 147), quais sejam: a produção de mercadorias e relações monetárias de produção e troca; a vigência da lei do valor e a existência de mercados; extração, acumulação e investimento de excedentes; existência simultânea de um macrosssetor produtivo e de um macrossetor improdutivo.

No mesmo sentido, já expusemos que os autores também defendem que “todo sistema socioeconômico deve estar de acordo com o MMP” (idem), isso é, todas as formas de sociedade atuais só podem existir de forma sustentável se obedecerem às restrições por ele impostas (basicamente as mesmas restrições para a reprodução de qualquer sociedade capitalista).

Sobre isso, vale ressaltar que, para os mesmos, é possível que mais de um modo de produção coexista, nacional ou internacionalmente, desde que dentro dos limites impostos pelo MMP (p. 145).

Em linhas gerais, pensamos ser esses os principais pressupostos para entendermos a lógica interna do texto.

3. Elementos necessários à análise do caráter da formação social chinesa

3.1. A China e a divisão internacional do trabalho – qual o papel do capital chinês no século XXI?

Ao que nos parece, para os autores, o modo de produção capitalista não é o mesmo que o modo de produção socialista – ou o “capitalismo real” não é o mesmo que “formações econômico-sociais orientadas ao socialismo” – embora uma leitura desatenta desse livro, inevitavelmente, leve a uma confusão sobre qual seria a diferença fundamental entre ambos.

Algo que Elias Jabbour, um dos autores, expressa frequentemente em entrevistas e aparições públicas é a importância do setor público da economia chinesa, seu núcleo. Isso está também na obra examinada (p. 175):

O desenvolvimento de um grande setor público na economia, gerador de efeitos de encadeamento por todo o organismo econômico, é a grande característica da nova classe de formações econômico-sociais inaugurada pela China. Em outras palavras, o metamodo de produção comporta a existência desse novo tipo de formação econômico-social em seu interior e, aqui, ao falarmos de efeitos de encadeamento (spillover), estamos demonstrando que a dominância do setor público da economia se expressa pela capacidade de geração de demanda para os outros setores da economia, sobretudo o privado.  Isso nada mais é que uma caraterística de uma formação econômico-social de orientação socialista: a dependência do setor privado da geração de impulsos pelo setor público da economia. (grifo nosso)

Pressupõe-se, portanto, que nas sociedades capitalistas o setor privado da economia é preponderante e submete o setor público aos seus desígnios. Na “formação econômico-social orientada ao socialismo” se daria o contrário.

É bastante curioso o fato de que essa orientação ao socialismo se torna, na verdade, uma orientação ao desenvolvimento nos marcos da economia clássica. Repetimos: o socialismo é apresentado no livro como “um projeto de caráter desenvolvimentista e, portanto, alicerçado em um Estado com capacidade política e institucional de gerar demanda para suas empresas e utilizar seus bancos como financiadores de grandes empreendimentos” (p. 174/175).

É razoável supor que um projeto desenvolvimentista busque o desenvolvimento, todavia essa finalidade almejada não é exatamente explicada ao longo da exposição. Tomaremos como base a “definição” de desenvolvimento trazida no capítulo 14 do livro (p. 273) e não contraditada pelos autores:

A economia política clássica, notadamente na pessoa de Adam Smith, classificou o processo de desenvolvimento e divisão social do trabalho como um processo em que a economia de mercado se expande em detrimento do espaço de ação de atividades econômicas não voltadas para a troca. Ainda no caso chinês, a expansão da economia de mercado é alimentada pelo processo de desaparecimento da economia natural de subsistência. Atualmente, a economia de mercado continua a se expandir sob a guarida de um tipo superior de Encom na agricultura que vem substituindo lentamente a pequena produção mercantil. São mudanças institucionais que permitem o andamento desse processo.

Concluímos, a partir da própria exposição dos autores, que: o socialismo de mercado chinês, projeto desenvolvimentista baseado no núcleo econômico de seu setor público que, criando demanda para outros setores da economia, sobretudo o privado, promove a expansão do mercado em detrimento do espaço de ação de atividades econômicas não voltadas para a troca.

Isso é dito, mas não exatamente explicado enquanto processo e enquanto relação entre os diferentes setores da economia chinesa.

O momento impõe que expliquemos, portanto, o que exatamente significa essa relação entre os setores públicos e privados da economia chinesa, COMO esses efeitos de encadeamento (criação de demanda) são efetivamente criados e qual o seu SIGNIFICADO.

Aqui vale dizer que a exposição dos autores é extremamente genérica nesse aspecto: as análises setoriais da economia, a explicação sobre o papel de cada um deles nesse processo de desenvolvimento e de como setores mais primários da economia (ligados à produção de infraestrutura e/ou meios de produção) subsidiam a atuação dos setores mais complexos da economia, ligados à produção de bens de consumo de alta tecnologia, basicamente não existem.

Vamos ao que interessa.

A base de análise utilizada será o Estudo preliminar “Uma análise do (sic) situação mundial do capitalismo neste século a partir das suas maiores empresas”, publicado pelo ILAESE (Instituto Latinoamericano de Estudos Sindicais), instituto de pesquisa ligado ao PSTU e à central sindical CSP-Conlutas. O estudo ainda não é definitivo, mas não há motivo para crer que sua publicação final altere substancialmente as conclusões ali indicadas.

Entendendendo que seria preferível aguardar a publicação final, a urgência impõe que utilizemos esses dados provisórios, sem prejuízo de uma atualização do texto após a liberação dos resultados finais, mesmo por que algumas tabelas utilizadas não estão em arquivos de boa qualidade. Nada disso, todavia, impede a inteligibilidade do levantamento.

O estudo pode ser acessado em: https://litci.org/pt/2025/01/21/uma-analise-do-situacao-mundial-do-capitalismo-neste-seculo-a-partir-das-suas-maiores-empesas/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

Além disso, quando necessário, recorreremos a outras fontes, como no caso do NBSC (National Bureau of Statistics of China – um órgão nacional estatístico chinês), devidamente citadas.

Em linhas gerais, o estudo indicado analisou dados referentes a 500 grandes (gigantes) empresas mundiais, selecionando empresas com dados divulgados (ou seja, excluem-se, em geral, empresas de capital fechado que, por razões óbvias, não podem ser analisados por não conseguirmos acessar os dados) e partir de subsetores específicos e que possuam receitas anuais de, pelo menos, 20 bilhões de dólares.

Os subsetores analisados foram os seguintes:

INDÚSTRIA EXTRATIVA: petrolífera, extrativa mineral, agropecuária

MEIOS DE PRODUÇÃO: transporte, telecomunicações, siderurgia e metalurgia, química e petroquímica, insumos diversos, energia, eletrônicos de ponta (semicondutores, baterias, equipamentos de telecomunicações), indústria de construção, máquinas e equipamentos, insumos aeroespaciais.

BENS DE CONSUMO FINAL: têxtil, indústria digital, eletrônicos de ponta, farmacêutica, eletrônicos tradicionais, consumo gerais, autoindústria, artigos de luxo, alimentos, aeroespacial.

SERVIÇOS: transporte, comunicação, serviços gerais, serviços de saúde.

CAPITAL COMERCIAL: e-commerce, varejo e atacado.

CAPITAL PORTADOR DE JUROS: bancos, demais serviços financeiros não bancários (seguros, grupos de investimento etc.).

A totalidade dessas 500 empresas representa “um total de ativos (patrimônio bruto) de 115 trilhões de dólares (superior ao PIB anual mundial), uma receita líquida de 30,5 trilhões de dólares, um lucro bruto de 9,3 trilhões de dólares e uma massa de trabalhadores (diretos) de 57,6 milhões.”

Especificamente em relação à China, nosso objeto de análise, a circunstância de os GCEEs, grandes empresas estatais, em muitos casos, possuírem matrizes de capital fechado e subsidiárias de capital aberto dificulta a análise, o que é indicado no corpo do estudo – “por esse motivo, de todos países considerados, a China é sem dúvida alguma o mais sub-representado”, embora ali se defenda que a maior parte do capital de origem chinesa foi contemplado.

Antes de mais nada, como medir qual o peso de cada país na divisão internacional do trabalho?

Certamente não é pelo tamanho do PIB (Produto Interno Bruto), independentemente de como ele é calculado, isso porque esse índice NÃO considera a origem da propriedade do capital que atua em cada país produzindo riqueza a partir da extração de mais-valor.

Consideremos o caso do Brasil: a título de exemplo, levando em conta os dados do FMI relativos ao ano de 2024, vemos que o PIB total mundial foi calculado em 110.06 trilhões de dólares e o PIB brasileiro na casa de 2.19 trilhões de dólares. Isso significa cerca de 1,971% do PIB mundial.

Entretanto, será que esse número expressa o peso do capital brasileiro, isso é, das empresas sediadas no Brasil, na produção de valor a nível global?

O estudo oferece duas alternativas melhores para responder a essa pergunta (não sem limitações, é claro, mas ainda assim muito melhores), avaliando, por meio dos dados dessas 500 maiores empresas, o peso de cada país a partir da receita líquida auferida por essas empesas e pela massa de trabalhadores por elas empregados.

Considerando os 18 países com o maior PIB, segundo os mesmos dados do FMI, teremos, em bilhões de dólares:

O Brasil ocuparia, portanto, de acordo apenas com o PIB, a 9ª posição entre as maiores economias mundiais.

Por outro lado, a lista de maiores países a partir da receita líquida do percentual dessas 500 empresas é significativamente diferente: 

Aqui o Brasil aparece na 13ª posição, atrás de países que nem estavam na primeira lista como Taiwan e Suíça, com as empresas sediadas no país representando cerca de 0,8% da receita líquida total das empresas analisadas (menos da metade dos 2% que o PIB brasileiro representa em relação ao PIB mundial).

Ao considerarmos, dessa vez, o número de trabalhadores das empresas sediadas em cada país sobre o número total de trabalhadores dessas 500 maiores empresas, teremos a seguinte proporção:

[Aqui se vê que a China, em 2004, embora fosse um país com cerca de 4% do capital mundial, empregava por volta de 13% dos trabalhadores das 500 maiores empresas, o que indica, naquele momento, uma produtividade do trabalho bastante reduzida em relação à atual.]

Nesse quesito o Brasil aparece na 14ª posição, com cerca de 0,82% do número total de trabalhadores.

Isso ocorre pois o grosso dos valores produzidos pela indústria no Brasil se dá a partir de empresas sediadas fora do Brasil e que migram para o estrangeiro na forma de lucros e dividendos, mesmo quando se trata de empresas sediadas no Brasil e que possuem capital aberto, (a Petrobrás e a Embraer são grandes exemplos, ambas possuem capital majoritariamente estrangeiro).

Voltando à China, as análises ainda puramente numéricas sobre a receita líquida de suas empresas e a respectiva quantidade de trabalhadores (sem contar, ainda, a relação da quantidade de trabalhadores com a produtividade de seu trabalho) indicam que se trata de um país central para a economia capitalista mundial.

Esse outro gráfico relacionado à receita líquida total do conjunto das 500 empresas deixa mais claro o caminho ascendente da China na divisão internacional do trabalho nos últimos 20 anos, em comparação às outras grandes potências capitalistas:

Os EUA se mantiveram relativamente estáveis sob esse critério, a China aumentou muito seu peso e as restantes potências perderam, em grande medida, seu dinamismo.

Prosseguimos.

Em relação à distribuição desse capital chinês pelos setores elencados acima, vê-se:

Peso do capital chinês por setor a partir da receita líquida setorial das empresas chinesas sobre a receita líquida total das empresas selecionadas

2004

2023

Indústria Extrativa

3,21%

Indústria Extrativa

18,81%

Meios de produção

8,34%

Meios de produção

30,83%

Bens de consumo final

0,88%

Bens de consumo final

12,24%

Capital improdutivo/portador de juros

3,17%

Capital improdutivo/portador de juros

16,19%

Serviços

3,74%

Serviços

9,92%

Comercial

0,21%

Comercial

12,62%

Observa-se que o setor de bens de consumo final, importante por congregar largas cadeias de produção, deu um salto imenso no processo de expansão do capital chinês. Trata-se de um setor do “topo da cadeia produtiva e [que], geralmente, concentra os setores de tecnologia mais avançada, centralizando toda a chamada cadeia de suprimentos e bens intermediários”.

Nesse quesito, a posição das empresas sediadas nos EUA é bastante superior em relação à dos outros países, com 39,59% da receita líquida total.

O percentual comparativo das outras potências capitalistas (aqui sem os EUA) pode ser observado nesse gráfico – com o salto chinês impressionante de mais de 1000% em relação ao peso da indústria de bens de consumo final do país desde 2004:

Entre as 500 maiores empresas, os autores do estudo mostram que apenas não existem empresas chinesas no setor têxtil, de consumos gerais (basicamente tabaco, limpeza e produtos de uso residencial) e artigos de luxo – o que não quer dizer que não existam grandes empresas nesses setores, elas existem, só não estão entre as 500 maiores segundo os critérios utilizados para a seleção.

3.2. O capital chinês a partir de suas grandes empresas

Aqui, o estudo realizado tem a proeza de nos ajudar a entender mais profundamente uma questão que o livro de Jabbour e Gabriele afirma sem explicar muito bem: como o setor público chinês gera os tais efeitos de encadeamento na economia para o setor privado (ou não-público, como prefere Elias) e qual o caráter da relação entre o setor público e privado: é uma relação contraditória, na qual um deve negar e destruir o outro, ou uma relação de simbiose, na qual ambos trabalham em prol de um objetivo comum?

Um exemplo dessa afirmação (p. 220):

Ao longo dos últimos vinte anos, e sobretudo na última década, o setor privado chinês tornou-se um setor ancilar do setor público da economia, beneficiando-se dos efeitos de encadeamento gerados pelos grandes investimentos estatais. (grifo nosso)

E outro (p. 263):

Parêntese importante: outra verdade econômica nada elementar é a centralidade do investimento público, na qual o tempo de maturação do investimento é maior e, por conseguinte, o setor privado tem pouco interesse imediato, como é o caso de empreendimentos em infraestruturas. Trata-se do típico investimento que eleva a demanda interna no curto prazo, provocando efeitos de encadeamento em toda economia, e no longo prazo gera elevação da capacidade produtiva. O próprio FMI tem incentivado esse tipo de intervenção estatal na economia (“Fiscal Monitor: Public Expenditure Reform: Making Difficult Choices”, International Monetary Fund, 2014). (grifo nosso)

A divisão realizada para entendermos essas grandes empresas foi feita a partir da propriedade do capital:

a) Empresas 100% estatais: 29 empresas;
b) Empresas estatais com capital aberto (controladas pelo Estado): 31 empresas;
c) Empresas privadas com participação estatal (controladas pelo capital privado): 11 empresas;
d) Empresas 100% privadas: 29 empresas.
Total: 100 empresas.

a) Empresas 100% estatais: SGCC (State Grid Corporation of China), Sinopec (China Petroleum & Chemical Corporation), CSCEC (China State Construction Engineering Corporation), CREC (China Railway Engineering Corporation), CRCC (China Railway Construction Corporation), CCCC (China Communications Construction Company), BAIC (Beijing Automotive Industry Corporation), PetroChina (controlada pela CNPC – China National Petroleum Corporation), China Shenhua Energy (parte do grupo Shenhua), COSCO Shipping, Huaneng Power International, Huadian Power International, Energy China (China Energy Engineering Corporation), China Telecom, China Mobile, China Unicom, CNOOC (China National Offshore Oil Corporation), PowerChina (Power Construction Corporation of China), Aluminum Corporation of China (Chinalco), China Southern Airlines, Air China, China Eastern Airlines, CRRC (China Railway Rolling Stock Corporation), CNBM (China National Building Material Group), China Resources Land, Poly Real Estate, SinoTrans, SAC (Shanghai Aircraft Manufacturing Company), Xian Aircraft Industrial Corporation.

Já vimos na tabela acima que a maior presença setorial do capital chinês no âmbito dessas 500 maiores empresas por receita líquida está no setor de meios de produção (30% do capital mundial), que envolve as áreas de indústria petroquímica, construção, telecomunicações, energia, semicondutores, baterias, equipamentos de telecomunicações, transporte, siderurgia e metalurgia e insumos aeroespaciais.

Algumas dessas empresas são as maiores do mundo nos respectivos setores, como a China State Grid Corporation – cuja receita líquida é de 546 bilhões de dólares (!), a terceira maior empresa do mundo nesse quesito – e a CSCEC (China State Construction Engineering Corporation), com receita líquida de quase 320 bilhões de dólares em 2023.

No setor de construção, além da CSCEC outras três empresas chinesas (entre as quais a CRCC e a CCCC também são 100% estatais) estão entre as cinco maiores do setor, com o quinto lugar pertencendo a uma empresa francesa.

A lógica desses setores é a descrita por Elias e Gabriele, realizam investimentos pesados e com retornos diluídos em longos períodos e que, por isso, não são atrativos para a iniciativa privada. Não por acaso, em vários países a construção desse tipo de infraestrutura só foi possível com investimento estatal, como é o exemplo do próprio Brasil. Trata-se de investimentos que, a partir do momento em que se tornam lucrativos, estão aptos à privatização. Essa foi a história de várias grandes estatais brasileiras, dentre as quais podemos citar a Telebrás, CSN, Eletrobrás, Vale, etc.

Se é senso comum que a China é a fábrica do mundo, é senso comum também que essas fábricas precisam de energia, carvão, ferro, aço, internet 5g, plástico, petróleo, prédios, estradas, ferrovias, portos, aeroporto, etc..

Essas grandes estatais, portanto, não abastecem apenas as indústrias privadas chinesas que estão à frente da cadeia produtiva, mas também as empresas estrangeiras que lá atuam, podendo produzir em escalas impossíveis de serem obtidas em qualquer outro lugar (até o presente momento) e resultando em insumos de baixíssimo custo, sem mencionar o fato de que toda essa infraestrutura, na China, é bastante nova e extremamente eficiente: o caso dos mais de 40.000 km de ferrovias de alta velocidade é exemplificativo.

[No anuário de 2021, do mesmo instituto, (ILAESE), afirma-se que a maior parte do capital empregado na indústria de transformação na China era estadunidense – não sabemos em que medida isso se mantém, esperamos que o estudo completo nos esclareça nesse sentido – trata-se de uma informação não tão fácil de se obter. Essa afirmação é feita depois da demonstração de que, embora a China fosse naquele momento a fábrica do mundo (e ainda é), a maioria dos monopólios que dominavam setores da indústria de automóveis, eletroeletrônica, aeroespacial, de bens de capital e farmacêutico não era chinesa.]

Além do ganho de escala, o controle estatal dessas indústrias permite que boa parte dessas empresas atue com baixas taxas de lucro (que são em muitos casos muitos menores que a média do mercado) e transfira valor para empresas que estão à frente da cadeia.

O maior exemplo disso é o da própria SGCC:

O lucro operacional está ligado às atividades produtivas da empresa (exclui receitas financeiras de companhias que, p. ex., investem parte de seus lucros em ações de outras empresas ou títulos de dívida pública) e é calculado a partir da subtração dos custos de produção e despesas operacionais (despesas indiretas relacionadas à produção: marketing, vendas, limpeza, etc.) do montante obtido pela venda de seus produtos. Além disso, o lucro operacional ainda será dividido em três partes, lucro líquido (para os capitalistas), juros (para os bancos) e impostos (para o Estado), ou seja, o lucro líquido dessa empresa é ainda menor do que o que essa taxa mostra.

Vê-se logo que a baixíssima taxa de lucro operacional da SGCC, muito abaixo da média do setor, expressa os “efeitos de encadeamento” que o setor público é capaz de gerar, e que gerarão, como veremos posteriormente, maiores taxas de lucro para os setores que estão à frente da cadeia produtiva.

Um outro exemplo disso é a taxa de lucro operacional da CSCEC: foi de 4.1% em 2022 e 4.2% em 2023 (cf. Relatório Anual de 2024 da empresa).

b) Estatais com Capital Aberto (31 empresas): ICBC (Industrial and Commercial Bank of China) , Ping An Insurance , CCB (China Construction Bank), ABCHINA (Agricultural Bank of China), BOC (Bank of China), BOCOM (Bank of Communications), Shanghai Pharmaceuticals, CR Pharmaceutical (China Resources Pharmaceutical), Xiamen C&D, Xiamen ITG, Metallurgical Corporation of China, Jiangxi Copper, Zijin Mining, Shaanxi Coal and Chemical Industry, HBIS/HEBEI Iron and Steel Group, Angang Steel, Beijing Shougang, Shanghai Electric, Zoomlion Heavy Industry, Avic China (Aviation Industry Corporation of China), China Hongqiao Group, S.F. Holding., Guangzhou Automobile Group, Hisense Home Appliances, XMXYG (Xiamen Xiangyu Group Corporation), Sinochem International, Zoomlion Heavy Industry, TBEA (Xinjiang TBEA Group), SMIC (Semiconductor Manufacturing International Corporation), Baoshan Iron & Steel.

Aqui se concentram o setor siderúrgico, bancário e de seguros, de mineração e de metais, saúde e indústria farmacêutica.

Podemos utilizar o setor bancário chinês como exemplificativo da lógica de atuação das empresas estatais de capital aberto – lembrando que não há uma regra para a quantidade de capital estatal e privado nessas empresas (em relação às ações ordinárias, que dão direito ao recebimento de lucros e dividendos), mas que seu controle operacional/administrativo se encontra nas mãos do Estado chinês.

Os quatro maiores bancos chineses operam nessa lógica (lista da Standard & Poor):

Nesse setor, segundo o estudo, as taxas de lucro são as médias do mercado, “pois não há a necessidade, nem seria desejável, lucros abaixo do lucro médio.”, muito em razão da participação do capital privado nesses empreendimentos.

c) Privadas com Participação Estatal (11 empresas): Xian Aircraft (parte do grupo AVIC), FAW Group (First Automotive Works), Changan Automobile, Dongfeng Motor, Guangzhou Automobile Group (GAC Group), Inner Mongolia Yili Industrial Group, Hunan Valin Steel, CATL (Contemporary Amperex Technology), Weichai Power, SinoChem International, WanHua Chemical.

Essas empresas são controladas pelo capital privado e têm participações variáveis de capital estatal em seu interior.

De acordo com o estudo, trata-se aqui principalmente de companhias nos setores de alta tecnologia (e em grande medida, de bens de consumo final) destinados à atuação no mercado e interno externo, cujas atividades exigem grandes investimentos iniciais, obtidos a partir de empréstimos dos bancos de desenvolvimento chineses – são exemplos os setores de aviação, automotivos e tecnologia de baterias.

O Estado tende a subsidiar empresas com essas características até o momento em que elas consigam competir internacionalmente – a partir daí, diminui-se a participação estatal e os lucros podem ser dirigidos, cada vez mais, ao setor privado da economia.

d) Empresas 100% Privadas (29 empresas): Xiaomi, BYD, Great Wall Motors, Geely, Li Auto, Midea, TCL Technology, Gree Electric, Haier, Kweichow Moutai, NetEase, Hikvision (apesar de possuir laços com o governo, é privada), Kuaishou, Hisense Home Appliances, Wuxi Apptec, Luxshare Precision, Lenovo, Meituan, Didi, Tencent, SANY Group, China Evergrande Group, Suning.com., Kuaishou, Li Auto, Wuxi AppTec, Hengli Group, CATL (Contemporary Amperex Technology Co. Limited), Meituan.

Aqui, a lógica é bastante parecida com as empresas do item ‘c’: são principalmente empresas destinadas ao mercado interno com enorme potencial (ou necessidade) de expansão no mercado externo, em razão da concentração de suas atividades no setor de bens de consumo final.

O setor de bens de consumo final é particularmente estratégico (não à toa a participação do capital chinês nesse campo cresceu mais de 1000%). Trata-se, em geral, da indústria de mais alta tecnologia, de maior alcance global, que exige a mais alta qualificação do trabalho (tanto para a produção final quanto para a fabricação dos próprios meios de produção usados pelas empresas, protegidos a sete chaves enquanto propriedade intelectual) e também uma gigantesca concentração de capital para produzir.

Nesse sentido, o potencial de extração de mais-valor é também enorme para as empresas que dominam esses setores a nível mundial, e fica bastante claro que a disputa nesses casos é, de fato, global: vide o embate entre as fabricantes de carros elétricos chinesas (principalmente a BYD), por um lado, e a Tesla, do outro, uma disputa que envolve toda a cadeia de produção desses bens (desde as terras raras à produção de baterias elétricas e semicondutores) e a disputa do mercado mundial. São variados os exemplos de embates de gigantes nos variados setores industriais de ponta, como eletrônicos pessoais, eletrodomésticos, telecomunicações, indústria digital, e-commerce, etc.

Aqui, naturalmente, em oposição à atuação das companhias 100% estatais, as empresas privadas podem auferir tantos lucros quanto conseguirem, na média do mercado ou maiores.

É o caso da ALIBABA – setor de e-commerce e inteligência artificial:

E o caso da HUAWEI – líder mundial no setor de equipamentos de telecomunicação (especialmente nos setores mais avançados de internet 5G e, no futuro, 6G):

Sobre os dados, o estudo não incluiu algumas empresas de capital fechado sem dados disponíveis, como a ByteDance (empresa-mãe do Tiktok) e a COMAC (empresa 100% estatal do setor de aviação).

Na obra de Jabbour e Gabriele, cita-se um estudo de Piketty, Zucman e Yang (p. 195) que estima que a participação da propriedade pública na riqueza nacional chinesa caiu de 70% em 1978 para 30% em 2015, bem como que o governo chinês possuía (aqui não fica claro se em 2015 ou em 2017, momento de publicação do artigo), à época, 60% das ações nos mercados de ações chineses.

Sem adiantar temas que trataremos à frente, precisamos ressaltar um ponto crucial: o capital chinês, público ou privado, age segundo a lógica própria de acumulação do capital.

Se o Estado chinês atua enquanto um capitalista mais racional (e com mais capital), que pode suportar não ter grandes lucros de forma imediata e, por isso, é capaz de direcionar investimentos a setores estratégicos da economia (a moderna e gigantesca infraestrutura produtiva chinesa é um exemplo nítido) que só darão retorno em 20, 30 ou 40 anos, nem por isso deixa de atuar enquanto capitalista. Trata-se do mesmo papel que o Estado cumpre em qualquer outro país capitalista: de defensor e representante dos interesses da burguesia, nacional ou estrangeira.

Por outro lado, precisamos nos questionar se essa “dominância do setor público da economia [que] se expressa pela capacidade de geração de demanda para os outros setores da economia, sobretudo o privado” (Jabour e Gabriele, p. 175) realmente reflete uma forma de organização social qualitativamente daquela existente no Brasil, por exemplo: em nosso país, podemos dizer que o setor privado da economia não depende do setor público? A burguesia brasileira poderia passar bem sem plano safra, dívida pública, privatizações, compras públicas e etc.?

A resposta é não, mesmo segundo os próprios Jabbour e Gabriele (p. 322 do livro):

O desafio de uma abordagem honesta sobre o papel do Estado na economia e, principalmente, de sua importância para a criação de condições institucionais favoráveis ao surgimento de grandes conglomerados, estatais e privados, está em adotar uma chave explicativa que não separe Estado e mercado, mas o contrário, pois não existe Estado e desenvolvimento sustentado sem uma poderosa economia de mercado. O contrário também é verdadeiro.

3.3. A expansão do capital chinês pelo mundo e no Brasil

Como não poderia deixar de ser, a maior parte da produção mundial de mercadorias se dá a partir de grandes multinacionais, empresas gigantescas que conseguiram acumular enormes quantidades de capital e conhecimento técnico que resultaram em um nível de produtividade assombroso. Em grande medida, termos acesso a mercadorias de uso pessoal como celulares ou computadores a preços “relativamente razoáveis” é consequência direta dessa gigantesca escala de produção.

O trabalho dos 57,6 milhões de trabalhadores empregados pelas 500 empresas analisadas no estudo representa uma receita líquida de 30,5 trilhões de dólares, cerca de 1/3 do PIB mundial. Desconsideradas as distorções que o cálculo do PIB representa, uma coisa é certa: esses menos de 1% da população mundial de trabalhadores produzem uma fatia bastante significativa da riqueza global anualmente.

O desenvolvimento chinês, ao contrário do que se deu no caso dos EUA ou Inglaterra, já ocorre na etapa imperialista do capitalismo, onde o mercado mundial já está dominado por esses grandes monopólios.

O projeto de desenvolvimento chinês foi capaz de, nesse ambiente hostil e partindo da indústria estatal do período pré-1978, grande e pouco produtiva, desenvolver grandes conglomerados estatais e privados, por meio do aumento de sua produção (concentração do capital) e por processos de fusões, aquisições e privatizações (centralização do capital).

Qual é o destino dessa riqueza que é produzida cada vez em grau mais ampliado?

“É evidente que se o capitalismo tivesse sido capaz de desenvolver a agricultura, que agora se encontra em toda parte terrivelmente atrasada em relação à indústria, se tivesse sido capaz de elevar o nível de vida das massas da população, a qual permanece, apesar do vertiginoso progresso da técnica, em uma vida de subalimentação e miséria, não haveria motivo para se falar de um excedente de capital. E tal “argumento” é constantemente apresentado pelos críticos pequeno-burgueses do capitalismo. Mas então o capitalismo deixaria de ser capitalismo, pois a desigualdade no desenvolvimento e o nível de subalimentação das massas são as condições e as premissas basilares, inevitáveis, desse modo de produção. Enquanto o capitalismo permanecer capitalismo, o excedente de capital dirige-se não à diminuição dos lucros dos capitalistas, mas ao aumento desses lucros por meio da exportação de capital para o estrangeiro, para os países atrasados.” (Imperialismo, estágio superior do capitalismo, p. 85/86)

No caso da China (item 1.1.1), mesmo com a estratégia deliberada de extinguir as relações de produção de autossubsistência no âmbito das comunas rurais, ou seja, de expandir as relações de produção mercantis por todo o campo, o capital monopolista chinês, como coloca Lênin, “amadureceu demais” e “carece de campo para sua colocação lucrativa no âmbito apenas do mercado interno.

E se apenas a exportação de mercadorias era a característica determinante da saudosa época do capitalismo de livre concorrência, “para o capitalismo mais recente, com o domínio do monopólio, tornou-se típica a exportação de capital.” (idem, p. 85).

Diferentemente da exportação de mercadorias, que, mesmo quando feita em condições desiguais (exportar computadores e importar soja, milho e carne de porco, p. ex.), impõe, em algum nível, uma troca de equivalentes, a exportação de capitais permite a extração de mais-valor sem contrapartida. É certo que os países que recebem capitais podem obter benefícios indiretos a partir da renda dos trabalhadores que passam a laborar nesses empreendimentos estrangeiros e da arrecadação de tributos. Todavia, a extração de mais-valor que é remetido diretamente aos países que sediam esses capitais recebe um sinal verde e é até buscada pelos países tecnologicamente atrasados!

Podemos verificar, a partir de algumas empresas selecionadas no estudo do ILAESE, a expansão da atuação de algumas empresas chinesas, enquanto exportadoras de mercadorias e enquanto exportadoras de capitais:

Esse levantamento, como se vê, mostra principalmente empresas de bens de consumo final de alta tecnologia, nos setores de eletrônicos de uso pessoal (smartphones, computadores), indústria digital, telecomunicações, automóveis, e-commerce e eletrodomésticos, por exemplo.

Entretanto, os setores estatais ou mistos da economia também exportam seus capitais segundo a mesma lógica. Podemos ver isso mais especificamente ao analisar algumas informações relativas à exportação de capitais chineses para o Brasil:

Vemos novamente na lista a SGCC, a maior empresa chinesa, que adquiriu o controle acionário da CPFL Energia em 2017. De acordo com a revista Valor Econômico, a CPFL, em 2023, era a quarta maior empresa do setor de energia elétrica do Brasil por receita líquida, auferindo um total de 39 bilhões de reais em 2023.

Na China, a SGCC atua no sentido de oferecer insumos baratos para subsidiar a produção industrial do país, com uma taxa de lucro abaixo do mercado; no Brasil, a SGCC atua segundo a taxa de lucro média, estando livre para recolher lucros e dividendos da CPFL de acordo com sua posição societária. O fato de essa estatal chinesa controlar diretamente esse recurso estratégico aqui no Brasil aparentemente não causa estranheza – ou causa uma estranheza incomum, que não nos faz questionar o real sentido desse fenômeno.

Outra estatal (nesse caso, de capital misto) que não está na tabela e que também atua no Brasil é a SINOCHEM (que também já mencionamos no item 1.1.1), a partir da aquisição da Syngenta, empresa multinacional do setor de agronegócio. A Syngenta produz agrotóxicos e sementes, uma empresa que vive de empurrar veneno em nossas goelas (a sessão “Mitos do Agro” no site da empresa é particularmente divertida) e que, no Brasil, conta com duas fábricas, centros de distribuição, pontos de venda, etc.

O processo descrito por Clóvis Moura (Dialética Radical do Brasil Negro, capítulo I) de transição entre o modo de produção escravista pleno e o capitalismo dependente brasileiro, que chama de escravismo tardio, no qual o capital inglês se insere nos setores dinâmicos da economia (ferrovias, telégrafos, navegação a vapor, exportação e transporte da produção agrícola, grande varejo, setor bancário, etc.), continuou a partir do domínio estadunidense e, ao que tudo indica, continuará com grande participação (quiçá domínio) do capital chinês.

Nas palavras do grande autor (p. 90):

Não havia brecha em que as necessidades de modernização (consumo) aparecessem sem que os ingleses nelas não se instalassem e a dinamizassem em proveito próprio.

Existem outros exemplos bastante simbólicos da expansão do capital chinês no Brasil, como o caso da BYD, que possui três fábricas no Brasil. Em relação à fábrica de Camaçari (BA), fruto de investimentos de cerca de 5.5 bilhões de reais, o Ministério Público do Trabalho resgatou 163 operários chineses em condições análogas à escravidão em 23/10/2024, que trabalhavam no processo de readaptação da antiga fábrica da FORD para o início da produção. Eles eram empregados terceirizados de uma empreiteira chinesa, a Jinjiang Construction. A BYD possui ainda uma fábrica em Campinas (chassi de ônibus, módulos fotovoltaicos e kits solares, de acordo com o site da empresa) e em Manaus (fabricação de baterias).

Existem ainda outros casos de exportação de capitais chineses para o Brasil que não estão no quadro trazido pelo estudo nem foram citados neste texto. A China, que há pouco tempo começou a exportar em massa seus capitais para o exterior, acelera esse movimento:

O levantamento aponta que a China manteve sua posição como principal investidor asiático no Brasil, com um estoque de Investimento Estrangeiro Direto (IED) de US$ 45,3 bilhões em 2023, um crescimento de 22,1% em relação a 2022.Com o resultado, a China se posiciona como 9º maior investidor no Brasil, conforme dados oficiais do Banco Central do Brasil.

Reforçamos que:

a) o capital chinês não é majoritário mundialmente pois o capital estadunidense segue dominante, embora a expansão chinesa seja significativa e bastante recente (principalmente nos últimos 20 anos);

b) o capital chinês segue tentando superar a distância que o separa do capital estadunidense, especialmente nos setores mais tradicionais de alta tecnologia – o capital chinês domina o setor de meios de produção e alguns ramos específicos de tecnologias mais recentes, como internet 5g, baterias/carros elétricos, energia fotovoltaica, etc.

É o que ilustra esse quadro, a partir do capital das 500 empresas analisadas:

c) o capital chinês, público ou privado, no âmbito internacional, continua operando a partir da lógica reprodutiva e tautológica do capital em geral:

Os dados não consolidados da OECD, do primero semestre de 2024, mostram a China como o segundo maior investidor direto no estrangeiro, atrás dos EUA e um pouco à frente do Japão.

Entretanto, de acordo com o estudo do ILAESE:

Destacamos que a presença do capital chinês no mundo é, certamente, proporcionalmente menor que a dimensão absoluta de suas empresas. Isso, porém, não surpreende. O desenvolvimento mais expressivo do capital de propriedade chinesa é um fenômeno das últimas duas décadas, com sua expansão global mais significativa ocorrendo nos últimos 10 a 15 anos. Por outro lado, as potências europeias, os Estados Unidos e o Japão exportam seus capitais há mais de um século. O que nos interessa ressaltar aqui é que, seja qual for o peso absoluto do capital chinês no mercado global para além de suas fronteiras, o movimento nessa direção é inquestionável e significativo. (grifo nosso)

4. Conclusões

4.1. Capitalismo?

Camaradas, chegamos ao momento do texto no qual precisamos recorrer “dogmaticamente” a alguns textos de Marx e de outros autores para nos opor frontalmente às teses apresentadas na obra de Jabbour e Gabriele e que, para mim, são absurdas.

Pela própria natureza desta tribuna, pública e acessível a todes militantes e também a quem mais costuma acessar nossas redes sociais, fiz o esforço que pude no sentido de explicar todos os “conceitos” utilizados pelos autores criticados, na medida do possível.

Uso as aspas porque acredito, como marxista, que um conceito só faz sentido enquanto segue um dado movimento real, se esse conceito busca descrever algo que ocorre ou que ocorreu de fato – os conceitos não criam a realidade, podem apenas expressá-la, bem ou mal, nos limites da racionalidade humana. No caso da obra criticada, muitos de seus supostos conceitos foram jogados sem muita explicação e rapidamente (na visão dos autores) passam a condicionar toda a realidade, sem que saibamos de onde eles vêm e para onde vão.

Por exemplo: o objetivo do livro é apresentar a sociedade chinesa como socialista ou em uma fase embrionária do socialismo, mas ao lê-lo não consegui, a partir da exposição, descobrir o que é socialismo: não consigo diferenciar o socialismo ali apresentado de nossa própria sociedade capitalista.

Ao contrário, nos parece que o resultado geral do livro (seja ele intencional ou não) é transformar capitalismo em socialismo, igualá-los.

Dessa maneira, avaliamos que um ponto de partida válido para a crítica de tal empreendimento é iniciar com uma breve exposição sobre o que é capitalismo e capital, de modo a não confundir ainda mais quem nos lê.

Sigamos.

É preciso entender, para os fins desse texto, pelo menos em um nível básico, o que caracteriza uma sociedade enquanto capitalista, ou melhor, se existem elementos particulares dessa forma de sociedade que a diferem de formas que já existiram, como o feudalismo, e de outras que podem vir a existir, como o socialismo. Pensamos que esses elementos existem.

Alguns trechos do prefácio à primeira edição do primeiro volume de O Capital (todas as citações dessa obra seguirão a 3ª edição da ed. Boitempo) podem nos ajudar a entender quais são esses elementos (p. 78/80):

O físico observa processos naturais, em que eles aparecem mais nitidamente e menos obscurecidos por influências perturbadoras ou, quando possível, realiza experimentos em condições que asseguram o transcurso puro do processo. O que pretendo nesta obra investigar é o modo de produção capitalista e suas correspondentes relações de produção e de circulação. Sua localização clássica é, até o momento, a Inglaterra. Essa é a razão pela qual ela serve de ilustração principal à minha exposição teórica, mas, se o leitor alemão encolher farisaicamente os ombros ante a situação dos trabalhadores industriais ou agrícolas ingleses, ou se for tomado por uma tranquilidade otimista, convencido de que na Alemanha as coisas estão longe de ser tão ruins, então terei de gritar-lhe: De te fabula narratur [A fábula refere-se a ti]

Na verdade, não se trata do grau maior ou menor de desenvolvimento dos antagonismos sociais decorrentes das leis naturais da produção capitalista. Trata-se dessas próprias leis, dessas tendências que atuam e se impõem com férrea necessidade. O país industrialmente mais desenvolvido não faz mais do que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro.

(...)

Para evitar possíveis erros de compreensão, ainda algumas palavras. De modo algum retrato com cores róseas as figuras do capitalista e do proprietário fundiário. Mas aqui só se trata de pessoas na medida em que elas constituem a personificação de categorias econômicas, as portadoras de determinadas relações e interesses de classes. Meu ponto de vista, que apreende o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo histórico-natural, pode menos do que qualquer outro responsabilizar o indivíduo por relações das quais ele continua a ser socialmente uma criatura, por mais que, subjetivamente, ele possa se colocar acima delas. (grifamos)

Em linhas gerais, os pontos ressaltados nesse trecho se aplicariam a qualquer forma de organização social ou modo de produção: cada modo de produção é constituído de relações sociais típicas que determinam como produzimos o que consumimos e como essa produção é distribuída; a reprodução dessas relações sociais é uma necessidade para que cada modo de produção continue existindo enquanto tal; essas relações se impõem sobre os indivíduos que fazem parte de cada uma dessas sociedades, de modo que não cabe a qualquer um desses indivíduos, isoladamente, questionar essa lógica de vida.

Algumas relações sociais típicas de nossa sociedade já existiam antes de existir capitalismo, como mercadorias, dinheiro e mercado, p. ex., relações que apareceram há mais de 2000 anos atrás, em determinados momentos específicos da história – durante o período grego clássico, por exemplo, Atenas era uma cidade renomada por sua capacidade comercial (nem por isso havia ali capitalismo).

Por outro lado, vemos também relações sociais que só surgiram a partir da sociedade capitalista e a principal dessas relações é o capital, cuja lógica precisamos entender.

Para compreender nossa sociedade de forma específica precisamos tomar essas características genéricas, que qualquer forma de sociedade possui, e dar a elas concretude.

Se a mercadoria, o dinheiro e o mercado surgiram antes de existir capitalismo, podemos afirmar categoricamente que sua existência fora do modo de produção capitalista não foi central para a organização de nenhuma dessas formas pregressas de sociedade – nunca se alcançou, nessas experiências históricas, a generalização e a universalização da mercadoria, do dinheiro e do mercado que se desenvolveu ao longo dos últimos 500 anos.

Que as mercadorias adquiriram centralidade absoluta em nossa vida, isso é inegável. Praticamente tudo o que precisamos para viver precisa ser adquirido na forma de mercadoria (ou serviços) e impõe que nós, trabalhadores, vendamos primeiro nossa capacidade de trabalhar para, depois, comprar o que precisamos para viver com o mínimo de dignidade. Cada avanço tecnológico, cada descoberta que se traduz em uma nova necessidade humana impõe um novo encargo e um maior esforço de nossa parte para satisfazê-la:

Para viver, todo o homem deve pois fornecer e vender uma mercadoria. A produção e a venda de mercadorias tornou-se a condição existência humana. Para produzir, não importa que mercadoria, são necessários meios de trabalho, utensílios, matérias-primas, um local de trabalho, uma oficina com as condições necessárias de trabalho, iluminação, etc., enfim uma certa quantidade de alimentos para viver durante a duração da produção e até a venda da mercadoria. Somente algumas mercadorias insignificantes podem ser produzidas sem meios de produção, por exemplo os cogumelos ou os frutos apanhados na floresta, os moluscos que os habitantes das zonas próximas do mar apanham na praia. Mesmo aqui, são precisos alguns meios de produção, cestos por exemplo, e em todo o caso víveres que permitam subsistir durante este trabalho. A maior parte das mercadorias exigem gastos importantes, por vezes enormes, em meios de produção, em toda a sociedade de produção mercantil desenvolvida. A quem não tem estes meios de produção, a quem não pode produzir mercadorias não resta mais do que levar a si mesmo, quer dizer a sua própria força de trabalho, como mercadoria ao mercado.  (grifo nosso) (Rosa Luxemburgo, introdução à economia política, p. 296.

Uma mercadoria é mercadoria porque é produzida para ser vendida, para ser trocada, e não para ser consumida por seu próprio produtor.

Nesse sentido, é uma exigência da própria natureza da mercadoria que ela seja trocada antes de ser consumida. Nesse trecho (O Capital, I, p. 160) Marx fala da relação entre o possuidor de mercadorias (trata-se do capítulo 2 de O Capital, em que ainda não se trata especificamente do burguês e do proletário, mas apenas do “possuidor de mercadorias”, literalmente alguém que possui mercadorias, independente de quais elas sejam) e sua mercadoria:

Sua mercadoria não tem, para ele, nenhum valor de uso imediato. Do contrário, ele não a levaria ao mercado. Ela tem valor de uso para outrem. Para ele, o único valor de uso que ela possui diretamente é o de ser suporte de valor de troca e, portanto, meio de troca. Por essa razão, ele quer aliená-la por uma mercadoria cujo valor de uso o satisfaça. Todas as mercadorias são não-valores de uso para seus possuidores e valores de uso para seus não-possuidores. Portanto, elas precisam universalmente mudar de mãos. Mas essa mudança de mãos constitui sua troca, e essa troca as relaciona umas com as outras como valores e as realiza como valores. Por isso, as mercadorias têm de se realizar como valores antes que possam se realizar como valores de uso. (grifo nosso)

Dizer que “as mercadorias têm de se realizar como valores antes que possam se realizar como valores de uso” significa que a prioridade de cada possuidor de mercadorias (não-valores de uso para si) é trocar suas mercadorias (a troca realiza a mercadoria enquanto valor) para obter alguma outra mercadoria que satisfaça suas necessidades, e essa troca precisa vir antes de seu consumo (o consumo realiza a mercadoria enquanto valor de uso – enquanto uma coisa que é capaz de satisfazer uma necessidade humana). Tanto a mercadoria por ele consumida quanto a por ele vendida só puderam ser realizadas, enquanto valores de uso, após serem trocadas.

A generalização dessa lógica é, sem dúvidas, uma particularidade de nossa forma de sociedade. Embora toda mercadoria, para ser mercadoria, precise ter alguma utilidade para outrem, se ela não puder ser trocada (ou vendida por seu produtor, digamos), ela é inútil. Somente na sociedade capitalista podemos viver a situação absurda de uma crise de superprodução, onde o problema é o desenvolvimento da produção ao ponto em que é impossível realizá-la como valor, vendê-la.

Tal é a “racionalidade” do capital.

De acordo com Marx (idem, p. 228/229):

(...) A circulação simples de mercadorias – a venda para a compra – serve de meio para uma finalidade que se encontra fora da circulação, a apropriação de valores de uso, a satisfação de necessidades. A circulação do dinheiro como capital é, ao contrário, um fim em si mesmo, pois a valorização do valor existe apenas no interior desse movimento sempre renovado. O movimento do capital é, por isso, desmedido.
Como portador consciente desse movimento, o possuidor de dinheiro se torna capitalista. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é o ponto de partida e de retorno do dinheiro. O conteúdo objetivo daquela circulação – a valorização do valor – é sua finalidade subjetiva, e é somente enquanto a apropriação crescente da riqueza abstrata é o único motivo de suas operações que ele funciona como capitalista ou capital personificado, dotado de vontade e consciência. Assim, o valor de uso jamais pode ser considerado como finalidade imediata do capitalista. Tampouco pode sê-lo o lucro isolado, mas apenas o incessante movimento do lucro. Esse impulso absoluto de enriquecimento, essa caça apaixonada ao valor é comum ao capitalista e ao entesourador, mas, enquanto o entesourador é apenas o capitalista ensandecido, o capitalista é o entesourador racional. O aumento incessante do valor, objetivo que o entesourador procura atingir conservando seu dinheiro fora da circulação, é atingido pelo capitalista, que, mais inteligente, lança sempre o dinheiro de novo em circulação. (grifo nosso)

O trabalhador precisa vender sua força de trabalho (capacidade de trabalhar) para adquirir, no mercado, bens/valores de uso (na forma de mercadorias) para sua subsistência. O objetivo desse movimento, dessa circulação de mercadorias (M-D-M – vende-se para comprar), é o consumo.

O capital, ao contrário, não opera segundo essa lógica.

Em nossa sociedade, o processo de produção de tudo o que precisamos para viver se inicia a partir do capital, representado pelo capitalista, e se orienta ao seu próprio aumento. Compra-se força de trabalho (contrata-se trabalhadores), meios de trabalho (tudo o que se interpõe entre o trabalhador e seu objeto de trabalho – máquinas, equipamentos, etc.) e objetos de trabalho (coisas sobre as quais o trabalho será efetuado). O trabalhador produz mercadorias que serão posteriormente vendidas, jogadas no mercado. A venda das mercadorias completa o ciclo e permite que ele seja reiniciado.

Ao fim de cada ciclo, o capital se valoriza. O capital adiantado D, transformado em mercadorias M pelo trabalho, volta às mãos do capitalista como D’, perfazendo o ciclo D-M-D’ (descrito, em O Capital, a partir do capítulo 4 – A Fórmula Geral do Capital).

O capital retorna como D’ e não como D porque não faria sentido adiantar 100 reais para, ao final, obter 100 reais, sendo que para tanto o portador do capital precisou contratar funcionários, comprar insumos, etc. Não. O representante do capital adianta 100 para obter 110, 120, 130, 140, etc.

O objetivo do movimento do capital, valor que assume ora a forma de “capital adiantado” (capital monetário), ora a forma de mercadorias, ora a forma de “capital retornado” (capital monetário novamente), é o próprio movimento de autovalorização. Acumula-se para acumular. Valoriza-se para valorizar.

Evidentemente que essa brevíssima exposição, extremamente simplificada, só serviu para voltarmos ao início do texto com uma reflexão um pouco mais aprofundada sobre nossa sociedade a partir de suas relações de produção.

A sociedade capitalista está fundada sobre o trabalho assalariado e a propriedade privada. Nela, os produtos do trabalho adquirem a forma universal de mercadorias, que precisam ser trocadas antes de serem consumidas. Elas só podem ser produzidas se, ao final de seu ciclo, o capital adiantado se valorizar a partir da extração de mais-valor (se D se tornar D’) – o trabalhador não deve pagar apenas o seu salário com seu trabalho, deve produzir um excedente de valor que é apropriado gratuitamente pelo capitalista (mais-valor).

Se o trabalhador não pode escolher se vai participar, ou não, desse ciclo monstruoso, tampouco o capitalista pode fazê-lo. O capitalismo também se impõe sobre o capitalista. Se quiser manter sua posição social privilegiada o capitalista precisa ceder aos caprichos do capital, superar a figura do mero entesourador para se tornar um “entesourador racional”, que sabe que para aumentar o capital é preciso renovar o ciclo, circular para acumular.

O conteúdo material desse processo, as vidas dos trabalhadores tocados por essa máquina, tudo isso é secundário ao movimento tautológico do capital, que, em uma relação permanente consigo mesmo, precisa crescer para crescer.

Não importa se o capitalista tem um bom coração, se é uma pessoa gentil ou se ama fazer caridade. Não por acaso Marx se refere várias vezes, ao longo da exposição, aos capitalistas e trabalhadores como “atores” ou “personagens teatrais”: ambos cumprem papeis sociais contra os quais não podem, enquanto indivíduos, rebelar-se.

Isso por que as mercadorias “não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras”, muito menos produzir-se umas pelas outras (O Capital, Livro I, p. 159/160):

Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias. Na sequência de nosso desenvolvimento, veremos que as máscaras econômicas das pessoas não passam de personificações das relações econômicas, como suporte das quais elas se defrontam umas com as outras. (grifamos)

De forma particularmente perniciosa, a exploração brutal do capital sobre o trabalhador se mostra apenas de formas indiretas, ao contrário da exploração em relações de produção pré-capitalistas. Na aparência, nossa sociedade é igualitária, não há castas ou estamentos, não há formas de vinculação vitalícia a um senhor feudal e/ou a sua propriedade, tal qual nas sociedades feudais. A escravização também não é mais legalizada, e se mesmo assim continua existindo em “formas análogas”, é impossível para a lógica capitalista que a escravização se generalize – quem iria comprar as mercadorias produzidas? A burguesia já foi uma classe revolucionária e lutou por liberdade, igualdade e fraternidade, o direito de “igualdade perante a lei” está previsto em praticamente todas as constituições burguesas atualmente vigentes, com a exceção, por exemplo, do “estado” israelense que por sua própria natureza de apartheid não poderia o fazer.

A relação do capitalista para com o trabalhador também se dá sob uma aparência de igualdade. O capitalista, possuidor do capital e livre para contratar, contrata o trabalhador, possuidor apenas de sua força do trabalho e também livre para contratar, pagando-lhe um preço por sua “mercadoria força de trabalho” (a força de trabalho é a capacidade que o trabalhador possui para trabalhar, isso é o que o capitalista compra). O trabalhador é livre porque pode dispor de sua força de trabalho livremente (não é escravo ou servo de ninguém) e também porque “não tem outra mercadoria para vender, livre e solto, carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho” (idem, p. 244).

Obviamente, essa liberdade é mera aparência, pois se a força de trabalho do trabalhador “(...) não é vendida, ela não serve de nada para o trabalhador, que passa a ver como uma cruel necessidade natural o fato de que a produção de sua capacidade de trabalho requer uma quantidade determinada de meios de subsistência, quantidade que tem de ser sempre renovada para sua reprodução” (idem, p. 248). Na realidade, ou se trabalha ou se passa fome.

Para piorar, essa relação entre o capital e o trabalhador ainda tem mais níveis de perversidade, que continuam se mostrando com aparente igualdade.

Não é a compra da força de trabalho que gera o tão cobiçado mais-valor para o capitalista, mas o consumo dessa força de trabalho, o trabalho que é efetivamente realizado e “cristalizado” em novas mercadorias. O preço da força de trabalho (salário) que é pago ao trabalhador representa, assim como qualquer mercadoria, o valor dessa mercadoria expresso em dinheiro (idem, p. 247):

O valor da força de trabalho se reduz ao valor de uma quantidade determinada de meios de subsistência e varia, portanto, com o valor desses meios de subsistência, isto é, de acordo com a magnitude do tempo de trabalho requerido para a sua produção.

Entretanto, o consumo da força de trabalho, o trabalho efetivamente realizado, não se limita a pagar pelos “custos de produção” (ou capital constante, meios de produção, e capital variável, dinheiro que será pago a título de salários – abstraindo dos “custos improdutivos de produção” ou “custos operacionais”, a limpeza da fábrica, o marketing, etc.), ou seja, não se resume ao trabalho mínimo necessário. De um jeito ou de outro, seja estendendo a jornada de trabalho ou aumentando a produtividade do trabalho, o capitalista buscará extrair o máximo possível de trabalho excedente que será por ele livremente apropriado na forma de mais-valor.

Logo, isso permite que, na aparência, mesmo que o pagamento da força de trabalho seja feito a um preço justo, o trabalhador ainda assim produzirá mercadorias que serão gratuitamente apropriadas pelo capitalista, tudo sob o véu de uma suposta igualdade. É claro que, na realidade, quase nunca o preço da força de trabalho é o bastante para custear uma vida digna por parte do trabalhador, na maior parte do tempo o salário basta apenas para que cada trabalhador não morra de fome e possa voltar a trabalhar.

Outra peculiaridade absurda da relação capital-trabalhador é o fato de que o trabalhador, na verdade, adianta o preço de sua força de trabalho para o capitalista, ou seja, “ele a entrega ao consumo do comprador antes de receber o pagamento de seu preço e, com isso, dá um crédito ao capitalista” (idem, p. 249). Em nossa militância, quantos casos já acompanhamos de trabalhadores que, depois de trabalharem um, dois ou três meses gratuitamente, tomam calote?

Muitos outros exemplos poderiam ser dados desses fenômenos típicos do modo de produção capitalista que, na simplicidade de suas aparências, criam ilusões de uma igualdade que não existe nem jamais existiu.

A questão é a seguinte: a reprodução do capital, movimento irracional ao qual capitalistas e trabalhadores estão subordinados, depende de um parasitismo extraordinário sobre a classe trabalhadora, que se em “condições ideais de troca de equivalentes” já é um castigo a todos os trabalhadores, nas condições reais de puro arrocho e violência é absolutamente insuportável.

É importante que estabeleçamos essas premissas básicas que guiam a reprodução diária da vida sob o capitalismo.

4.2. Socialismo?

Nos parece que essas características fundamentais do modo de produção capitalista, que nada mudaram nos últimos 200 anos, são pontos de partida mínimos para a luta dos comunistas. É uma luta que não se faz contra um ou outro capitalista especificamente, mas contra essa lógica que se expressa na contradição absurda entre a acumulação de capital e a existência física, moral e intelectual da classe trabalhadora, que tudo produz e tudo sofre.   

Esse é o significado da radicalidade da luta do movimento comunista, que identifica, a partir da crítica da economia política, quão débeis são as tentativas de reformar ou melhorar essa sociedade cuja racionalidade é irracional, cujo desenvolvimento significa sua própria destruição e cujas contradições não são e nem podem ser resolvidas, são apenas adiadas para novas crises, cada vez mais profundas.

A Carta de Marx a Weidemeyer (08/03/1852) é didática quanto a nossas tarefas:

[...] No que me diz respeito, não me cabe o mérito de ter descoberto nem a existência das classes na sociedade moderna nem a sua luta entre si. Muito antes de mim, historiadores burgueses tinham exposto o desenvolvimento histórico desta luta das classes, e economistas burgueses a anatomia económica das mesmas. O que de novo eu fiz, foi:

demonstrar que a existência das classes está apenas ligada a determinadas fases de desenvolvimento histórico da produção;
que a luta das classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado;
que esta mesma ditadura só constitui a transição para a superação de todas as classes e para uma sociedade sem classes. [...] (grifei)

Entender o desenvolvimento histórico da produção capitalista significa entender justamente o que precisamos destruir, o que precisamos transformar e o que precisamos levar em nosso processo de construção do socialismo a partir da ditadura do proletariado, essa cujo significado vem sendo mistificado e/ou esquecido repetidamente, desde há muito, por oportunistas das mais variadas matizes. De acordo com a Crítica do Programa de Gotha:

Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado.

A luta das classes só será conduzida necessariamente à ditadura do proletariado a partir de condições sociais que já estejam estabelecidas: não faz sentido esperarmos por transformações sociais por iniciativa da classe burguesa, que, embora seja obrigada a se mover de acordo com os desígnios do capital, não possui nenhum interesse em destruir a situação de coisas que garante o seu próprio domínio. As revoluções a cabo da burguesia já foram realizadas, a burguesia já se constituiu enquanto classe dominante a partir da expropriação dos meios de subsistência da maioria absoluta da classe trabalhadora, que é forçada a vender sua força de trabalho.

[Um adendo: trata-se aqui exclusivamente de sociedades capitalistas, onde há burguesia e proletariado estabelecidos. A partir dos rascunhos e da efetiva carta de Marx a Vera Zasúlich, o autor deixa entrever que as comunais rurais russas não precisariam passar por um processo de expropriação capitalista para, somente depois, serem novamente socializadas – não haveria, nesse sentido, um etapismo de desenvolvimento do capitalismo para, só depois, pensarmos na transição para o socialismo, em termos gerais.]

Independentemente da forma desse domínio, das “formas de Estado” ou “formas de Governo”, todos os Estados burgueses “se reduzem, de um modo ou de outro, mas obrigatoriamente, afinal de contas, à ditadura da burguesia.” (O Estado e a Revolução, ed. Expressão popular, p. 55). Por outro lado, (idem) a “(...) passagem do capitalismo para o comunismo não pode deixar, naturalmente, de suscitar um grande número de formas políticas variadas, cuja natureza fundamental, porém, será igualmente inevitável: a ditadura do proletariado.”

Apenas a classe mais desinteressada em manter essa ditadura burguesa, que “não tem nada a perder senão seus grilhões”, poderá cumprir a tarefa de expropriar os expropriadores, de acabar com as próprias condições que sustentam a sociedade burguesa de classes:

“O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo o capital da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado como classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível o total das forças produtivas” (Manifesto Comunista, trad. Álvaro Pina e Ivana Jinkings, São Paulo, Boitempo, 1998 [1848], p. 58).

Esse pequeno trecho do Manifesto Comunista, em particular, é alvo de falsificações oportunistas tanto no sentido de que o proletariado precisa “tomar o Estado” quanto no sentido de que sua tarefa principal, “tomando o Estado”, é apenas “aumentar o mais rapidamente possível o total das forças produtivas”. Do proletariado organizado em classe para arrancar o capital da burguesia, passa-se ao proletariado organizado em partidos políticos para disputar eleições e, ganhando, quem sabe, “desenvolver as forças produtivas”, em qual sentido essas forças produtivas são desenvolvidas, isso já não é muito bem explicado.

A ditadura do proletariado não é um “Estado em geral”, mas um “Estado em definhamento”, isto é, “constituído de tal forma que comece sem demora a definhar e que não possa deixar de definhar” (O Estado e a Revolução, p. 45). Afinal de contas, se o Estado é “o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes” (idem, p. 27) e a tarefa do proletariado é arrancar da burguesia seu capital e socializá-lo, isso é, destruir as condições materiais que sustentam a divisão da sociedade em classes, necessariamente a organização do proletariado em classe, ao longo do cumprimento de sua tarefa, definhará: será necessário, cada vez menos, exercer sua violência contra a classe burguesa.

Esse processo não será de curta duração, pois (idem, p. 109), a “expressão “o Estado definha” é muito feliz por que exprime ao mesmo tempo a lentidão do processo e a sua espontaneidade”. Não poderia ser diferente, pois a ditadura do proletariado instaurada a partir de qualquer país não terá apenas sua própria burguesia para enfrentar, mas a burguesia mundial – a etapa imperialista do capitalismo que impõe o domínio mundial do capital determina a necessidade dessa luta. Ademais, a transição rumo ao socialismo e o comunismo não é feita via decreto, não é uma mera nacionalização dos meios de produção, e sim uma alteração radical do modo de vida que não pode ser feita abruptamente.

Não negamos, como Lênin não negava (cf. acima), as variadas formas políticas sob as quais esse processo poderá ser realizado, todavia, concordamos com ele que a natureza dessas variadas formas política será inevitavelmente a ditadura do proletariado. Isso não é uma ideia criada a partir da cabeça de Marx, Engels ou Lênin, mas uma possibilidade, transformada em necessidade a partir das condições reais de nossa existência no modo de produção capitalista, a partir da realidade da classe trabalhadora que já existe em si, enquanto agente explorado que tudo produz, mas que ainda não existe para si, como agente político revolucionário.

Apenas após esse longo período de transição, sobre o qual não arriscamos adivinhar sua forma política, mas do qual já entendemos a natureza de seu conteúdo, que é a ditadura do proletariado, poderemos conquistar o socialismo (ou fase inferior do comunismo), de acordo com Marx (Crítica do Programa de Gotha):

Nosso objeto aqui é uma sociedade comunista, não como ela se desenvolveu a partir de suas próprias bases, mas, ao contrário, como ela acaba de sair da sociedade capitalista, portanto trazendo de nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da velha sociedade de cujo ventre ela saiu.

Algumas clarificações são necessárias antes de continuarmos. Confusões sobre o real significado de ditadura do proletariado e socialismo são utilizadas, com bastante frequência, de forma oportunista, tal qual os autores do livro aqui criticado fazem, para rebaixar o programa, as tarefas e o significado do movimento comunista.

Ditadura do proletariado não é a “forma política do socialismo”, mas um momento de transição entre o capitalismo e o socialismo (ou fase inferior do comunismo) e isso é repetido por Marx e Lênin não como capricho, mas por entender que toda essa lógica imposta pelo desenvolvimento do capitalismo, ao longo de mais de 500 anos, não será vencida do dia pra noite, mesmo após a primeira das muitas revoluções proletárias que serão necessárias para o desenrolar desse movimento. Não negamos o caráter de longa duração desse processo e não enxergamos, nas obras desses camaradas, nenhum posicionamento nesse sentido.

Quanto ao socialismo, não se trata de um “período de transição entre o capitalismo e o socialismo”, uma espécie de senso comum comunista que não poderia ser mais falso.

Trata-se de uma outra forma de sociedade, um outro modo de produção, saído da sociedade capitalista, “trazendo de nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da velha soceidade de cujo ventre ela saiu”, mas que com ela não se confunde em nenhum momento. Por quê?

Porque a lógica de funcionamento da sociedade capitalista, suas leis de funcionamento, não são as mesmas do socialismo. Novamente, Marx (O Capital, Livro I, p. 154/156):

A figura do processo social de vida, isto é, do processo material de produção, só se livra de seu místico véu de névoa quando, como produto de homens livremente socializados, encontra-se sob seu controle consciente e planejado. Para isso, requer-se uma base material da sociedade ou uma série de condições materiais de existência que, por sua vez, são elas próprias o produto natural-espontâneo de uma longa e excruciante história de desenvolvimento.

É verdade que a economia política analisou, mesmo que incompletamente, o valor e a grandeza de valor e revelou o conteúdo que se esconde nessas formas. Mas ela jamais sequer colocou a seguinte questão: por que esse conteúdo assume aquela forma, e por que, portanto, o trabalho se representa no valor e a medida do trabalho, por meio de sua duração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho? Tais formas, em cuja testa está escrito que elas pertencem a uma formação social em que o processo de produção domina os homens, e não os homens o processo de produção, são consideradas por sua consciência burguesa como uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo. Por essa razão, as formas pré-burguesas do organismo social de produção são tratadas por ela mais ou menos do modo como as religiões pré-cristãs foram tratadas pelos Padres da Igreja. (grifamos)

Algum leitor desse texto se arriscaria a dizer que a distribuição das mercadorias no mercado mundial e/ou nacional, feita de forma anárquica a partir de milhares (milhões) de unidades de produção autônomas, isoladas entre si, que é capaz de conviver ao mesmo tempo com crises de superprodução e milhões de trabalhadores passando fome, está sob “seu controle consciente e planejado”? Frases como “o mercado está agitado”, “o mercado está animado” e outras comumente repetidas pela mídia burguesa, representam o grau de insanidade de nossa atual forma de organização social, na qual a produção está completamente alheia a um “controle consciente e planejado”. Esse é o significado da produção para o mercado, característica típica de nossa sociedade a qual já abordamos acima.

Esse processo é regulado a partir da lei do valor, cuja formulação não significa simplesmente o fato de que o valor das mercadorias se origina do trabalho humano (algo que economistas burgueses antes de Marx já haviam descoberto), mas que busca entender como esse trabalho adquire a forma de valor e se cristaliza em mercadorias que precisam ser jogadas no mercado para serem trocadas, bem como a irracionalidade desse processo como regulador da produção. No mercado, o fato de essas mercadorias satisfazerem necessidades é secundário e a própria expressão do valor dessas mercadorias passa a circular de forma autônoma a elas como dinheiro, capital, etc., relações sociais que entram em choque contra os próprios trabalhadores que as produzem. A lei do valor é o que conduz esse processo como um todo, que vai desde as mercadorias até o capital fictício (mercado de ações, títulos da dívida pública, etc.), que envolve pressupostos e relações necessárias, que começam com o trabalho explorado, mas não se resumem a ele.

A generalização da lei do valor e do mercado em qualquer sociedade como reguladores da produção e da distribuição de riqueza, que nesse contexto toma a forma de mercadorias, é absolutamente inconciliável com o controle consciente e planejado da produção que emerge após um longo processo de expropriação dos expropriadores. São formas de organização social que não podem coexistir, que negam uma à outra absolutamente.

Sobre essa impossibilidade de continuidade da lei do valor no socialismo (ou fase inferior do comunismo), Roman Rosdolsky explica (Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx, p. 359), citando trechos das Teorias de Mais-Valor (ou o “Livro 4 de O Capital”):

Chegamos assim ao problema, tantas vezes colocado, da vigência da lei do valor no socialismo. Todos sabem (ou sabiam naquele momento) que, para os fundadores do marxismo, o valor era considerado uma categoria "que é a expressão mais ampla da escravização dos produtores por seu pró­prio produto" (Anti-Dühring). Disso se depreende que eles não podiam estender à sociedade socialista (ou comunista) a vigência da lei do valor. Ao contrário, combatiam qualquer eternização do conceito de valor como uma utopia pequeno-burguesa. Lemos nas Teorias: "Quando o trabalho é comunitário, as relações dos homens em sua produção social já não se apresentam como 'valor' e 'objetos'."65 "A própria necessidade de colocar o produto ou atividade dos indivíduos na forma de valor de troca, de dinheiro, [...] demonstra duas coisas: (a) que os indivíduos seguem produzindo só para a sociedade e na sociedade; (b) que sua produção não é imediatamente social, não é fruto de uma associação66 que divide o trabalho dentro de si."67 Portanto, em uma sociedade produtora de mercadorias, "o trabalho é transformado em trabalho geral através da troca, [...] a mediação tem lugar através da troca de mercadorias [Marx se refere à mediação entre os trabalhos privados individuais] , através do valor de troca, do dinheiro, que são expressões de uma única e mesma relação". No socialismo, ao contrário, "o trabalho do indivíduo é, desde o início, trabalho social [...] . Não há nenhum produto particular para ser trocado. O produto não é um valor de troca. Não deve ser primeiro convertido em uma forma particular para depois receber um caráter geral para o indivíduo. Em lugar de uma divisão do trabalho, que se gera necessariamente na troca de valores de troca, haverá uma organização do trabalho, a partir da qual se define a porção que corresponde ao indiví­duo no consumo coletivo."68 Por isso, neste caso, por importante que possa parecer na sociedade socialista, a medição do trabalho pelo tempo de trabalho só será um meio de planejamento social69 e já nada terá em comum com o "famosíssimo valor" (Engels) e com a lei do valor. (grifei)

Uma sociedade onde a produção não é mediada pela troca significa uma sociedade passível de um controle consciente e planejado, onde o excedente do trabalho não toma mais a forma de mais-valor apropriado gratuitamente por um punhado de parasitas, mas é utilizado única e exclusivamente para garantir vida digna a todos (sem distinção de classe), onde o “desenvolvimento” não significa mais a expansão desenfreada da produção em detrimento da própria existência humana, mas mais tempo livre, mais lazer, mais saúde, mais educação, etc. O trabalho continua a ser um fardo, mas um fardo qualitativamente diferente do que antes era, e que enquanto fardo pode ser reduzido paulatinamente a partir da incrível capacidade humana de pensar e produzir.

A lógica de mercado capitalista impõe que cada produtor, independente de outros produtores, produza o máximo possível para vender o máximo possível, e que a riqueza adquira, por meio da troca, uma forma geral de mercadoria para só depois ser consumida. A regulação dessa produção se dá apenas a posteriori, com o aumento ou diminuição de preços, que só depois poderão influenciar o aumento ou a diminuição da produção. Trata-se de mecanismo contraditórios para com a possibilidade de uma organização consciente e racional da produção. 

Para deixar clara essa diferença entre socialismo (ou fase inferior do capitalismo) e capitalismo, bem como para evitar confusões feitas pela obra de Jabbour e Gabriele, deixamos claro que, de acordo com o próprio Marx, ainda vigora “o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que esta é troca de equivalentes” (Crítica ao Programa de Gotha). Isso quer dizer que, nesse primeiro momento, a parcela da produção destinada ao consumo de cada trabalhador ainda precisará estar relacionada à quantidade de tempo de trabalho que esse trabalhador realiza, mas, ao mesmo tempo, “sob as novas condições, ninguém pode dar nada além de seu trabalho e, por outro lado, nada pode ser apropriado pelos indivíduos fora dos meios individuais de consumo” (idem). Os bens produzidos são DISTRIBUÍDOS, não trocados. A produção é IMEDIATAMENTE social e sua distribuição não é intermediada pela troca e pelo mercado.

Em relação ao fato de essa parcela da riqueza distribuída a cada trabalhador precisar, nesse primeiro momento, nessa primeira fase do comunismo (socialismo), ser ainda delimitada a partir da quantidade de trabalho efetivada por cada um; e considerando as diferentes capacidades de cada ser humano para cada trabalho em específico, que levarão à desigualdade de bens distribuídos a cada pessoa (a igualdade do direito burguês, que trata desigualmente os desiguais), Marx afirma que (idem):

Mas essas distorções são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como ela surge, depois de um longo trabalho de parto, da sociedade capitalista. O direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade.

Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, sua forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!”. (grifei)

O longo trabalho de parto do socialismo, a ditadura do proletariado, cria uma nova forma de organização social sem classes sociais que mantém heranças do antigo modo de produção capitalista, mas que é dele qualitativamente diferente. Não se trata de um mero “desenvolvimento de forças produtivas”, mas de um desenvolvimento de forças produtivas a partir de relações de produção superiores, que não tomam esse desenvolvimento a partir de uma expansão do mercado capitalista, tal qual na visão dos economistas burgueses, que ignora desde a própria condição física, cultural e intelectual dos explorados até o colapso climático advindo de uma produção sem fim. O desenvolvimento, aqui, envolve a produção de bens que não precisam quebrar em dois anos para serem substituídos, de bens que possam ser reformados e melhorados sem que se percam completamente, de bens em quantidade e qualidade que permitam o máximo de dignidade sem a destruição completa do planeta, etc.      

O comunismo será o último passo desse desenvolvimento, a superação definitiva dessas heranças e a superação da distribuição de riqueza a partir da lógica burguesa do “para cada um de acordo com o seu trabalho”.

4.3. Marxismo-leninismo-keynesianismo: o oportunismo do século XXI

Chegamos, portanto, à última subseção do texto. Nosso objetivo é analisar a obra “China: o socialismo do século XXI”, de Elias Jabbour e Alberto Gabriele a partir de seus próprios pressupostos, bem como trazer outros elementos de análise que não estejam presentes na obra para, ao fim, indicar o caráter da formação social chinesa atual, capitalista ou socialista.

Não se trata aqui de nomear, pois o nome “é algo totalmente exterior à sua natureza. Não sei nada de um homem quando sei apenas que ele se chama Jacó” (O Capital, Livro I, p. 175). Podemos chamar capitalismo de tijolo, de vaca ou de boné e nenhuma dessas palavras, nem mesmo capitalismo, nos ajuda a entender o desenrolar da vida em uma forma de organização social baseada na generalização do mercado, das mercadorias, da propriedade privada, do trabalho assalariado, etc.

Em geral, a obra fornece um contexto razoável para entender os processos de transformação na China desde 1978, embora não se proponha a ser exaustivamente detalhada nesse sentido. A exposição busca tratar das linhas gerais do processo e nisso não há nenhum problema, prender-se demais em algumas particularidades pode atrapalhar o entendimento da totalidade de qualquer fenômeno, mais ainda de um fenômeno tão complexo como o todo de uma forma de organização social.

É o que Lênin busca fazer, por exemplo, no Imperialismo (p. 26, ed. Boitempo), ao buscar compreender a primeira guerra mundial, uma guerra imperialista:

Isso porque a prova do verdadeiro caráter social ou, melhor dizendo, do verdadeiro caráter de classe de uma guerra consiste, evidentemente, não em sua história diplomática, mas na análise da situação objetiva das classes dirigentes de todas as potências beligerantes. Para descrever essa situação objetiva, não se trata de tomar exemplos e dados isolados (dada a infinita complexidade dos fenômenos da vida social, é possível encontrar sempre certa quantidade de exemplos ou dados isolados a fim de confirmar qualquer situação), mas, necessariamente, o conjunto dos dados sobre os fundamentos da vida econômica de todas as potências bleigerantes e de todo o mundo. (grifamos)

E o que esse todo, analisado a partir das informações trazidas pelos autores e por nós, nos diz?

Atualmente, a forma de organização social chinesa é capitalista e, embora possua suas particularidades (tanto quanto qualquer outra sociedade capitalista), essas particularidades não desnaturam o caráter burguês de suas relações de produção (e distribuição) de riqueza.

O processo de transformação que ocorreu na China, ao longo dos últimos 47 anos, baseou-se na transformação de relações de produção agrárias pré-capitalistas em relações de produção mercantis, com a expansão do mercado no campo servindo de motor das reformas econômicas, além da transformação capitalista da grande e pouco produtiva indústria estatal, até então sistematizada de forma a garantir serviços públicos para a população, com o fim da vitaliciedade dos cargos e a “corporatização” da administração.

No campo, o processo (na obra criticada, p. 205/208) passa pela celebração de contratos de responsabilidade entre famílias e o Estado, fixando uma quota de produção e permitindo a comercialização do excedente, pela possibilidade de “transferência de direitos de propriedade a terceiros ou a utilização desse direito como garantia para empréstimos bancários” (p. 205/206), pelo estímulo à formação de empresas rurais e de cooperativas e pelo subsídio estatal da atividade produtiva no campo via bancos estatais (os autores mencionam que, em 2016, a China era o país que mais subsidiava a agricultura no mundo).

Embora a propriedade da terra em si seja do Estado chinês, é plenamente possível e estimulada a alienação dos direitos de superfície, usufruto, uso, etc. sobre as terras, inicialmente dos camponeses, em favor dessas “formas superiores” de produção. As próprias cooperativas agrícolas (orientadas para o mercado), que, segundo os autores, têm 32 milhões de camponeses membros, se desenvolveram “na esteira da legalização da transferência dos direitos de concessão de terra, via leasing, subcontratos, formação de sistema de ações, etc.”.

Os autores trazem, inclusive, uma citação bastante educativa sobre o desenrolar desse processo (p. 207/208):

O primeiro [método] é a transferência das terras agrícolas de uma vila inteira. Isso é aplicado em áreas economicamente desenvolvidas, onde o chefe da vila tem grande capacidade de persuasão. Por exemplo, 118 vilas responderam por mais de 80% da taxa de transferência de terras agrícolas na cidade-prefeitura de Shaoxing, província de Zhejiang; 28 transferiram todas as terras (100%) da vila em 2014. No contexto do desenvolvimento relativamente rápido da indústria local e do aumento da transferência de mão de obra rural, a vila de Yaobang, na cidade administrativa de Xindai, subordinada à prefeitura de Pinghu, província de Zhejiang, formulou um documento intitulado “Regras de execução para a transferência de terras em toda a vila de Yaobang”. Depois que o documento foi aprovado por votação no Congresso dos Membros Representantes da Aldeia, os contratos de transferência de direitos de gestão das terras agrícolas foram assinados por 488 famílias – ou seja, todas as famílias da vila. Assim, 100% das terras agrícolas da vila, com a área total de 172 hectares, foram transferidas para entidades agrícolas voltadas para operação em escala; isso permitiu alcançar o objetivo de implementar operações agrícolas em escala. (grifamos)

Onde antes existia produção para a subsistência, sem a comercialização dos excedentes, no âmbito das comunas rurais, a produção foi mercantilizada, independentemente da forma: nas cooperativas, “empresas não cooperativas orientadas ao mercado”, propriedades familiares ou TVEs a essência do fenômeno é a mesma, utilizar os excedentes produzidos para o desenvolvimento do mercado, seja pelo consumo de bens manufaturados ou pelo investimento direto dos excedentes, na forma de dinheiro, em outros setores da economia, especialmente a indústria.

O mesmo processo se desenrola no âmbito da produção industrial, que conta com o estímulo estatal, a partir de bancos de desenvolvimento de capital misto (um sistema bancário muito concentrado), para a formação de monopólios estatais e privados.

Aqui, independentemente dos critérios utilizados pelo estudo preliminar do ILAESE ou dos critérios dos órgãos de estatísticas chineses, trata-se de empresas capitalistas:

Onde o estado é ele mesmo produtor capitalista, como na exploração de minas, florestas etc., seu produto é "mercadoria" e possui, portanto, o caráter específico de toda outra mercadoria. (Glosas ao manual de Adolph Wagner, Karl Marx) (grifamos)

De acordo com o anuário estatístico de 2024, do National Bureau of Statistics chinês, a média salarial do “setor não-privado”, em 2023, foi de cerca de 120.000 yuan (95 mil reais anuais – 7.900 reais mensais), enquanto que a do setor privado, de cerca de 63.000 yuan (50 mil reais anuais – 4.150 reais menais). Boa parte do setor “não-privado”, como explicamos acima, estabelecido nos setores de meios de produção, realiza lucros operacionais abaixo da média para transferir valores para os setores intermediários e de consumo final, que são controlados principalmente pelo setor privado – especialmente nos setores de alta tecnologia. Mesmo assim, pagam salários mais altos, em média, a seus trabalhadores.

Sobre o salário, que aparece como valor e preço do trabalho (mas representa o valor e preço da força de trabalho), que oculta o trabalho gratuito realizado pelo trabalhador assalariado (e a porção do trabalho que efetivamente é destinada à sua remuneração), Marx apontou, corretamente, que “repousam todas as noções jurídicas, tanto do trabalhador como do capitalista, todas as mistificações do modo de produção capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as tolices apologéticas da economia vulgar” (grifo nosso) (Livro I, p. 610).

Ambos setores produzem mercadorias destinadas ao mercado, ambos remuneram seus trabalhadores na forma de salário, ambos acumulam capital por acumular, etc., etc., etc. O nome de empresa estatal, empresa não-privada, empresa pública ou qualquer que seja não muda a essência da relação social que essa empresa cria e reproduz – não transforma a qualidade das relações sociais capitalistas que cria e mantém.

O setor público no Brasil também paga, em média, mais do que o setor privado. O Brasil é mais ou menos socialista por isso?

O mesmo se dá com a jornada de trabalho, que, infelizmente, não é documentada pelo mesmo órgão estatístico. De acordo com os dados de 2024 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre os países do G20 a China é o país com a segunda maior jornada de trabalho média, de 46,1 horas semanais, sendo a Índia a líder nesse quesito, com 46,7 horas semanais, em média, acima da jornada legal de 44 horas semanais.

Até 2021, o “sistema de trabalho 9-9-6”, que significa trabalhar 12 horas por dia e 6 dias na semana, era abertamente tolerado. Até então, embora a jornada legal semanal já fosse de 44 horas semanais, não havia qualquer limite para horas extras.  No ano em questão, o sistema 9-9-6 foi banido pela Suprema Corte Chinesa. Embora banida, a jornada 9-9-6 ainda é comum em alguns setores econômicos e não foi completamente superada.

Em geral, a produtividade chinesa é maior do que a das demais potências capitalistas, cuja curva reflete um aumento substancial nos últimos 20 anos:

Entretanto, no setor de bens de consumo final, a produtividade calculada a partir do mesmo critério, no estudo preliminar do ILAESE, ainda é baixa em relação a Japão, Alemanha e Estados Unidos, o que pode reforçar uma maior exploração da força de trabalho nesses setores:

Em geral, mudanças para maior ou menor, no preço da força de trabalho e na produtividade do trabalho, não significam mudanças qualitativas nas relações de produção que abarcam os trabalhadores chineses. A diferença é que maiores ou menores salários podem significar uma variação na quantia maior de mais-valor extraído, o mesmo valendo para as variações na produtividade.

Prosseguindo, os autores utilizam a informação de um estudo de Piketty, Zucman e Yang no sentido de que, em 2015, cerca de 30% da riqueza nacional chinesa seria propriedade pública e que, “nos EUA, França, Japão e Grã-Bretanha, em meados dos anos de 1970, o controle estatal sobre a estrutura completa de propriedade variou entre 15% e 25%” (p. 196). Essa informação é jogada como se esses percentuais, seja de 30, 20 ou 15 por cento, significassem por si só uma maior ou menor distância do socialismo, e não o fato (admitido pelos próprios autores) de não existir desenvolvimento capitalista sem a participação do Estado como ferramenta da burguesia em defesa de seus interesses (p. 332):

Mariana Mazzucato mostra a não existência de evidências empíricas que sustentem a hipótese de que o setor privado floresce sem a moldura de uma (sic) Estado forte e tomador de riscos. Ver Mariana Mazzucato, The Entrepreneurial State: Debunking Public vs. Private Sector Myths (Londres, Penguin, 2013).

Ademais, como explicamos, o processo de formação dos monopólios estatais chineses envolveu o fim do sistema de prestação de serviços públicos a partir das unidades produtivas (danwei), um sem-número de fusões, aquisições e falências e a financeirização de ativos por via do mercado de ações e do desenvolvimento de um sistema bancário concentrado. A SASAC continua a administrar esse processo, que não corre livre de contradições e nem está inteiramente sob seu controle, desafiando mesmo a existência de um “eficiente planejamento para o mercado”.

Um artigo citado por Elias e Gabriele, de Barry Naughton, SASAC and Rising Corporate Power in China (SASAC e a ascensão do poder corporativo na China, tradução livre), narra como, em 2007, duas empresas estatais de transporte aéreo supostamente controladas pela SASAC se envolveram numa situação em que a menor delas (China Eastern) precisava de investimentos e conseguiu negociar 24% de suas ações a uma empresa aérea de Singapura, mas foi bloqueada pela maior estatal do setor (Air China) que não queria perder um pedaço de sua fatia de mercado. Ainda hoje, essas empresas identificadas como 100% estatais no levantamento do ILAESE competem entre si como competiriam quaisquer outras empresas capitalistas, inclusive com ações à venda em bolsas de valores (esse fato em particular indica que não se tratam, na verdade, de empresas 100% estatais, embora ambas sejam controladas pela SASAC).

Até o momento, temos a concentração (o aumento da escala de produção) e a centralização (a compra de maiores empresas por menores ou sua fusão) de capital em menor escala no setor agrário (que vai desde a produção mercantil familiar até grandes cooperativas, “ENCOMs” e TVEs) e em larga escala na indústria.  Tudo está em linha com o que os autores propõem que é o socialismo (p. 174/175):

Em suma, apresentaremos o socialismo como um projeto de caráter desenvolvimentista e, portanto, alicerçado em um Estado com capacidade política e institucional de gerar demanda para suas empresas e utilizar seus bancos como financiadores de grandes empreendimentos.

Certamente, para os autores, o sistema financeiro chinês é um dos fundamentos do socialismo do século XXI. Tal proposição só pode partir de uma incompreensão absoluta do movimento do capital bancário e de seu desenvolvimento superior como capital financeiro (a partir de sua fusão com o capital industrial, comercial, etc.).

As atividades do capital bancário estão umbilicalmente ligadas às atividades do capital industrial e comercial (o intermediário entre as indústrias e o eventual consumidor da mercadoria), seja no âmbito do chamado comércio de dinheiro, com as operações rotineiras de cobrança, pagamentos, compensação de dívidas, etc., ou com a manutenção das reservas dos capitalistas industriais e comerciais. Além disso, ligadas às atividades de manutenção das reservas, existem também as funções creditícias dos bancos, ou seja, quando eles usam essas reservas monetárias de vários capitalistas diferentes para emprestar para outros capitalistas que precisam, por N motivos, de crédito para continuar ou expandir o movimento de reprodução do capital.

De forma bastante simplificada, podemos dizer que não haveria sistema bancário sem capital, visto que suas atividades não criam dinheiro ou capital a ser emprestado (não criam valor), simplesmente se utilizam das reservas de uma multitude de capitalistas para, por meio de variadas formas de dinheiro de crédito, emprestar a esses mesmos capitalistas capital monetário que poderá ser reinvestido e renderá aos bancos uma parcela do mais-valor extraído na indústria na forma de juros, funcionando como capital portador de juros – a função dos bancos enquanto comerciantes de dinheiro, naturalmente, também não poderia existir fora do ciclo do capital que passa obrigatoriamente por sua forma de capital-dinheiro. A reserva de capital de vários capitalistas criada a partir da extração de mais-valor de toda sociedade, empregada pelos bancos, torna-se capital portador de juros. Também na função de comércio de dinheiro os bancos apenas realizam de forma especializada uma parte das atividades necessárias à reprodução do capital industrial.

Assim como o capital industrial, o capital bancário se orienta tendencialmente ao monopólio, primeiro a partir da concentração do capital (o aumento da escala de suas operações, ou seja, o aumento do capital monetário disponível aos bancos) e depois da centralização do capital, que envolve a fusão, compra ou falência de um banco concorrente. Nesse processo, a partir do aumento do capital das indústrias e do incremento das escalas de produção, passam a cumprir um papel cada vez mais importante nos ciclos de reprodução do capital (Imperialismo, p. 56):

Os capitalistas dispersos acabam por constituir um capitalista coletivo. Ao movimentar contas-correntes de vários capitalistas, é como se o banco realizasse uma operação puramente técnica, exclusivamente auxiliar. Mas quando essa operação cresce até atingir dimensões gigantescas, resulta que um punhado de monopolistas subordina as operações comerciais e industriais de toda a sociedade capitalista, colocando-se em condições – mediante relações bancárias, contas-correntes e outras operações financeiras – primeiramente de conhecer com exatidão a condição dos negócios de diferentes capitalistas e, depois, de controlá-los, exercer influência sobre eles por meio da ampliação ou da restrição do crédito, facilitando-o ou dificultando-o, e, finalmente, de determinar inteiramente o seu destino, determinar a sua renda, privá-los de capital ou dar-lhes a possibilidade de aumentá-lo rapidamente e em grandes proporções etc.

A existência do capital portador de juros pressupõe a existência do capital em geral, mas o capital financeiro só surge em sua fase monopolista, “[a partir da] concentração da produção, monopólios que dela resultam, fusão ou junção dos bancos com a indústria: essa é a história do surgimento do capital financeiro” (idem, p. 69).

De acordo com Lênin (idem, p. 62), o capital-monetário (“ativos”) controlado pelos bancos se concentra ao lado da concentração do capital industrial, pois o crescimento social deste vai implicar na quantidade de reservas administradas por aqueles. Como consequência, os bancos passam a conhecer minuciosamente a situação de cada um de seus clientes, colocando-os em situação de dependência para com as instituições bancárias, pois o aumento da escala de produção, do capital fixo (máquinas e equipamentos cada vez mais complexos) exigirá aportes de capital-dinheiro cada vez maiores para a manutenção e o necessário incremento da produção:

Simultaneamente, desenvolve-se, por assim dizer, a união pessoal dos bancos com as maiores empresas industriais e comerciais, a fusão de uns com as outras mediante a posse de ações, mediante a participação dos diretores dos bancos nos conselhos de supervisão (ou de administração) das empresas industriais e comerciais, e vice-versa. O economista alemão Jeidels reuniu daos extremamente minuciosos sobre essa forma de concentração dos capitais e das empresas. Os seis maiores bancos berlinenses estavam representados, por seus diretores, em 344 sociedades industriais, e, pelos membros dos seus conselhos de administração, em outras 407. Ou seja, em 751 sociedades no total. (...) Além disso, nos conselhos de administração desses seis bancos havia (em 1910) 51 grandes industriais, entre eles o diretor da firma Krupp, o da gigantesca companhia de navegação Hapag (Hamburg-Amerika) etc.
A “união pessoal dos bancos com a indústria completa-se com a “união pessoal” de umas e outras sociedades com o governo. (grifo nosso) (Lênin, idem, p. 62/63)

Como bem sintetiza João Ricardo Soares (O capital financeiro e o capital-imperialismo, em Neodesenvolvimento ou Neocolonialismo, sobre o mito do Brasil imperialista, ed. Sundermann), essa fusão dá origem à oligarquia financeira, “cuja apropriação da mais-valia desvincula-se das distintas formas jurídicas (lucro do empresário e juro do banqueiro), e já não está mascarada pela atividade de gerir, ou o capital industrial ou o capital a juros, desvinculado a apropriação da mais valia da gestão empresarial e a vincula simplesmente com o título de propriedade”.

A burguesia monopolista chinesa (da qual uma parte significativa está expressa nos proprietários de ações das empresas analisadas pelo estudo do ILAESE) e seu Estado, representante de seus interesses e um grande possuidor de ações de empresas privadas chinesas, compõem a oligarquia financeira chinesa, cuja “(...) origem e razão de existência é a apropriação incessante de superlucros. A partir da diferença de produtividade, os monopólios aproveitam-se dessa desigualdade no interior das fronteiras dos Estados onde nasceram. Note-se que nos referimos à forma predominante e não à totalidade do capital, pois tanto as grandes empresas não monopolistas, como as médias e pequenas empresas continuam existindo ao lado dos monopólios. E é justamente desta desigualdade que se alimenta o capital financeiro” (João Ricardo Soares, idem).

Esse capital financeiro se expressa por meio de “instrumentos financeiros” baseados no capital fictício (títulos de dívida, ações, debêntures, hipotecas, etc.), cujo valor está ligado à perspectiva de rendimentos futuros e circula independentemente do capital efetivo das empresas situado nas fábricas, insumos, etc. Dizer que os bancos comerciais e de desenvolvimento chineses são controlados administrativamente pelo Estado não muda em nada o conteúdo de seu movimento necessário de expansão em busca de superlucros, em conjunção com o capital industrial e comercial.

O próprio capital das empresas passa a ser comprado e vendido, bem como exportado, esse é o significado do capital financeiro. Isso se realiza por meio de várias modalidades do chamado capital fictício, explicado por Marx nesse trecho de O Capital que trata do capital bancário (O Capital, Livro III, cap. 29):

A maior parte do capital bancário é, pois, puramente fictícia e consiste em títulos de dívidas (letras de câmbio), títulos da dívida pública (que representam capital pretérito) e ações (direitos sobre rendimentos futuros). E não devemos esquecer que o valor monetário do capital representado por esses papéis nos cofres do banqueiro é, ele mesmo, fictício, na medida em que tais papéis consistem em direitos sobre rendimentos seguros (como no caso dos títulos da dívida pública) ou títulos de propriedade de capital real (como no caso das ações) e que esse valor é regulado diferentemente do valor do capital real, que, ao menos em parte, esses papéis representam; ou quando representam mero direito a rendimentos, e não capital, o direito ao mesmo rendimento é expresso num montante de capital monetário fictício constantemente variável. Ademais, é preciso notar que esse capital fictício do banqueiro representa, em grande parte, não um capital do próprio banqueiro, mas do público que o deposita em suas mãos, com ou sem juros. (grifamos)

A financeirização do capital, portanto, não é o mesmo que especulação financeira, pois embora a especulação com ações, títulos de dívida e etc. seja uma atividade essencial do capital financeiro, tudo isso continua repousando sobre a extração de mais-valor social a partir da produção de mercadorias, sua base material. Dizer que o governo chinês regula fortemente o mercado financeiro, ou seja, que limita (não impede) a especulação, que não permite “a abertura da conta de capitais”, significa inversamente admitir todos os pressupostos plenamente capitalistas e acima citados da própria existência do capital financeiro enquanto encarnação da riqueza social roubada por um punhado de burgueses.

Vale ressaltar que a questão não se resume a apontar nominalmente os componentes dessa oligarquia financeira, mas o movimento desses poucos capitais concentrados e centralizados que se impõe. O sistema bancário chinês, integrante desse sistema financeiro, também altamente concentrado, principalmente estatal com participação privada, participa ativamente da exportação de capital chinês, sem nenhuma diretriz que não seja a busca do lucro a partir da exploração da classe trabalhadora mundial.

Por meio das bolsas de valores chinesas, de Shanghai, Hong Kong e Shenzhen as ações de companhias públicas e privadas chinesas são negociadas, em valores totais de mais de 15 trilhões de dólares.

Assim como as ações, os títulos da dívida pública também são uma modalidade de capital fictício, mas, ao contrário daquelas, sua função é principalmente absorver excedentes de capital que não podem ser utilizados para o incremento da produção e remunerá-lo a partir da “taxa básica de juros” de cada país. De acordo com o FMI, a dívida pública chinesa representa atualmente cerca de 84% do PIB (proporcionalmente menos que os EUA, com 120% do PIB, e o Japão, com 240% do PIB).

Esse sistema financeiro chinês, com participação acionária privada e controle administrativo estatal, subordinado à lógica do capital, não permite nem poderia permitir um planejamento da produção que supere a necessidade de intermediação de toda a vida social pelo mercado. Como os próprios autores trazem, a China não está livre de crises econômicas, enfrentadas por meio do endividamento do estado: nas situações de crise, nas quais o capital privado se vê sem alternativas de investimento produtivo, o Estado se endivida para estimular a economia por meio de “pacotes fiscais” ao mesmo tempo em que assume a obrigação de devolver esse capital, no futuro, com juros (Socialismo do século XXI, página 185-186):

No que tange à capacidade de intervenção estatal, houve, desde a década de 1990, dois grandes movimentos desse tipo na economia chinesa. O primeiro grande registro data do lançamento do Programa de Desenvolvimento do Grande Oeste, em 1999, que rapidamente se converteu na maior transferência territorial de renda do mundo moderno. Esse programa foi o primeiro grande passo para a unificação do território econômico da China, à semelhança do que ocorreu nos Estados Unidos na segunda metade do século XIX. Tratou-se também de uma resposta aos impactos da crise financeira asiática de 1997-1998 sobre a economia e o nível de emprego no país.

O segundo grande movimento ocorreu como resposta à crise internacional de 2008. Naquele mesmo ano, no dia 5 de novembro, o Conselho de Estado da China anunciou ao mundo um vigoroso pacote de estímulos à economia da ordem de US$ 586 bilhões – o que, na época, correspondia a 12,6% do PIB. Foi uma verdadeira intervenção em massa do Estado na economia, diga-se de passagem. Em apenas alguns anos, milhares de novos quilômetros de linhas de trens de alta velocidade, metrôs e estradas cortavam o país.

Isso não é exemplo de socialismo, camaradas, até mesmo o Brasil, governado por Bolsonaro, lançou um pacote fiscal de resgate à burguesia brasileira em 2020, o mesmo tendo se dado com a maioria dos países afetados pela pandemia de COVID-19, desde sul-americanos até europeus e asiáticos. Evidentemente, a China seguiu na mesma direção. Investimentos públicos a partir do endividamento estatal, em conjunturas de crise do capitalismo, são uma ferramenta plenamente capitalista para subsidiar o desenvolvimento do capital privado e, ao mesmo tempo, adormecer a parte desse mesmo capital que não pode ser aplicada produtivamente para remunerá-lo via juros da dívida pública. Isso é completamente diferente de um simples remanejamento de excedentes produzidos em um setor produtivo para outro setor produtivo, todo esse movimento é mediado pelo capital e serve à reprodução e expansão do capital. De que maneira isso poderia ser remotamente ligado ao socialismo, uma sociedade que superou a lei do valor? A lógica da dívida pública impõe que o Estado, tendo despendido os valores obtidos a partir desse empréstimo, remunere indefinidamente a burguesia a partir da cobrança de impostos, principalmente da classe trabalhadora: as mercadorias que expressavam seu valor no dinheiro representado pelo título de dívida são consumidas, mas esse valor continua a existir na forma de um título de dívida que dá direito, ao burguês, de receber juros que serão com certeza pagos, pois afinal de contas, como gostam de afirmar os keynesianos, o “país não quebra com dívida feita na própria moeda, que emite e precifica”.

[O IVA tem representado aproximadamente 30% das receitas tributárias desde 2017, ano posterior à reforma que simplificou a arrecadação através da eliminação do imposto sobre os negócios. O segundo imposto mais importante é o imposto de renda corporativo (CIT), que corresponde a algo em torno de 20%, seguido pelo imposto sobre o consumo de bens específicos (Excise Taxes) e, por fim, o imposto de renda pessoal. Os demais impostos não atingem 5% da arrecadação. (O SISTEMA TRIBUTÁRIO DA CHINA: UM OLHAR A PARTIR DO BRASIL, IPEA, 2022)]

Entretanto, o movimento não para por aí.

Na China, a existência de monopólios industriais e bancários e a constituição de um concentrado sistema financeiro não podem ser negados por ninguém a essa altura do campeonato. O estudo do ILAESE mostra que mais de 100 empresas chinesas estão entre as 500 maiores do mundo – pode-se tirar conclusão similar a partir da lista Fortune 500.

Mesmo com os frequentes pacotes de estímulo fiscal, com o aumento da dívida pública e com a expansão do mercado sobre relações de produção de subsistência no campo, o capital chinês atingiu um nível em que não consegue se reproduzir apenas com sua aplicação no mercado interno, por maior que seja o mercado consumidor chinês. Voltamos à necessidade da exportação de capitais e repetimos a citação do item 3.3 (Imperialismo, p. 85/86):

“É evidente que se o capitalismo tivesse sido capaz de desenvolver a agricultura, que agora se encontra em toda parte terrivelmente atrasada em relação à indústria, se tivesse sido capaz de elevar o nível de vida das massas da população, a qual permanece, apesar do vertiginoso progresso da técnica, em uma vida de subalimentação e miséria, não haveria motivo para se falar de um excedente de capital. E tal “argumento” é constantemente apresentado pelos críticos pequeno-burgueses do capitalismo. Mas então o capitalismo deixaria de ser capitalismo, pois a desigualdade no desenvolvimento e o nível de subalimentação das massas são as condições e as premissas basilares, inevitáveis, desse modo de produção. Enquanto o capitalismo permanecer capitalismo, o excedente de capital dirige-se não à diminuição dos lucros dos capitalistas, mas ao aumento desses lucros por meio da exportação de capital para o estrangeiro, para os países atrasados.” (grifei)

Constituído o sistema financeiro, a partir do qual o capital pode ser movimentado, comprado e vendido com bastante liberdade entre os capitalistas, cria-se a condição para sua exportação. Já abordamos algumas questões relativas a isso no item 3.3, como o papel preponderante das empresas do setor de tecnologia, especialmente nos setores destinados ao consumo final, na posição da China como segundo maior exportador de capitais e na exportação de capitais especificamente para o Brasil, que se expande sobre os setores dinâmicos de nossa economia, principalmente nos setores de meios de produção e do agronegócio.

Pode-se embelezar a questão chamando isso de “desenvolvimento compartilhado”, “globalização de desenvolvimento compartilhado”, “globalização institucionalizada’, etc. Nada disso muda o conteúdo desse movimento.

Uma das outras faces desse processo é a “Iniciativa do Cinturão e Rota” ou “Nova Rota da Seda”, um projeto que se iniciou em 2013 e, em 2023, já tinha alcançado a marca de 1.053 trilhão de dólares de investimentos cumulativos, 634 bilhões de dólares em projetos de construção e 419 bilhões em “investimentos não-financeiros”. O estudo analisado [abaixo] mostra que, em 2023, os projetos de construção foram dominados por empresas estatais (já vimos que as empresas públicas de construção chinesas dominam o setor mundialmente) e os outros investimentos por empresas privadas, principalmente a Huayao Cobalt e a CATL, ambas empresas inseridas na cadeia de produção de baterias elétricas. O investimento na tecnologia e na mineração de materiais necessários a esse processo (como lítio, níquel e cobalto, p. ex.) é particularmente importante para a reprodução do capital chinês, que se encontra à frente nesse setor de alta tecnologia mas que também briga pela hegemonia nos setores de eletrônicos de uso pessoal e semicondutores, estreitamente conectados à obtenção das “terras raras”.

[Esses dados podem ser analisados em “China Belt and Road Initiative (BRI) Investment Report 2023”, um estudo produzido em conjunto entre o Griffith Asia Institute (Griffith University) e a Universidade de Fudan, em Shanghai.]

Se “a exportação de capital torna-se um método para estimular a exportação de mercadorias” (Imperialismo, p. 89), é de particular importância a quantidade de investimentos da Nova Rota da Seda destinados à construção de rodovias, ferrovias, portos e aeroportos nesses últimos 10 anos. Foram construídos portos no Peru, Paquistão, Sri Lanka, Maldivas, Laos e Quênia, e ferrovias nesses e em outros países, como Tailândia, Arábia Saudita e Indonésia, bem como linhas ferroviárias conectam o território chinês à Europa. Os maiores recebedores desses investimentos em 2023 foram países africanos, seguidos por países do oriente médio.

Se o capital estadunidense é hegemônico nesse processo de exportações de capitais há mais de 100 anos, tendo construído ao longo desse período “instituições políticas” para exercer o seu domínio, como a ONU; dominado o sistema financeiro global a partir da dolarização do comércio exterior e do comando de um sistema de transações bancárias internacionais;  e construído mais de 800 bases militares pelo mundo para cercar seus inimigos, suas intervenções extraeconômicas não ocorrem por si mesmas, mas em favor da expansão do capital de sua burguesia.

Nesse sentido, imperialismo não é o mesmo que Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha e Japão, mas o estágio de desenvolvimento do capitalismo que impõe a expansão internacional dos capitais, a partilha do mundo entre as associações de capitalistas (à época de Lênin, cartéis e trustes, em nossa época, empresas multinacionais) e a respectiva partilha do mundo entre as grandes potências, entre os Estados que representam as burguesias detentoras desses capitais. O imperialismo é o capitalismo de nossos tempos, no qual cada país e cada burguesia terá que ocupar uma posição, seja ela uma posição principal ou subalterna:

Não é por conta de sua particular maldade que os capitalistas dividem o mundo, mas porque o patamar de concentração a que se chegou os obriga a seguir esse caminho para obter lucros; com isso, dividem-no “segundo o capital”, “segundo a força”: qualquer outro método de divisão é impossível no sistema da produção mercantil e do capitalismo. A força varia, por sua vez, a depender do desenvolvimento econômico e político; para compreender o que está acontecendo é necessário saber que problemas são solucionados pelas mudanças da força, mas saber se essas mudanças são “puramente” econômicas ou extraeconômicas (por exemplo, militares) é secundário e em nada pode alterar a abordagem fundamental da época mais recente do capitalismo. Substituir a questão do conteúdo da luta e das transações entre os grupos capitalistas pela questão da forma dessa luta e dessas transações (hoje, pacífica, amanhã não pacífica, depois de amanhã, outra vez pacífica) significa rebaixar-se ao papel de sofista.

A época do capitalismo mais recente nos mostra que entre as associações de capitalistas estão tomando forma determinadas relações com base na partilha econômica do mundo, e ao lado disso, e em conexão com isso, entre as associações políticas, estatais, estão tomando forma determinadas relações com base na partilha territorial do mundo, na luta pelas colônias, na “luta pelo território econômico”. (Imperialismo, p. 99) (grifei)

Não se trata de uma questão de vontade, bondade ou maldade, como bem explica Lênin, mas de um patamar de desenvolvimento do capitalismo que obriga os capitalistas a expandirem seus capitais sobre todo o mundo, segundo o capital, segundo a força. A configuração global atual dessa disputa é diferente daquela de 110 anos atrás, nem por isso seu conteúdo de violência econômica e de exploração de mais-valor a nível global se alterou. O conteúdo permanece, embora suas formas mudem a depender da conjuntura e possam se expressar em violência física e militar sobre outros países, nem por isso a própria razão de ser do imperialismo deixa de ser a expansão do capital – o próprio desenvolvimento do capital é pré-condição para esse movimento, não há (em sociedades capitalistas) potência militar sem capital que a sustente nem movimento militar que não tenha, direta ou indiretamente, os interesses da reprodução do capital em sua essência.

Jabbour e Gabriele pouco tratam do imperialismo no livro, basicamente usando o termo como sinônimo de países ocidentais, em especial os Estados Unidos, p. ex., em (p. 288) “Uma nova Guerra Fria está ocorrendo e a China e seus GCEE são o grande alvo do imperialismo.” e (p. 292) “A guerra comercial e tecnológica levada adiante pelo imperialismo para conter a China (...)”. A China, portanto, não faz parte do sistema imperialista.

Em uma entrevista, questionado especificamente sobre o imperialismo e a China, Jabbour expõe:

“Não, de forma alguma. A China não se enquadra em nenhum aspecto dos conceitos do imperialismo. Não vejo a China invadindo um país para depor um governo indesejável”
 Elias Jabbour

Ele observa que o conceito de imperialismo evolui ao longo do tempo
. O que mesmo assim, não faz com que a China possa ser considerado um país imperialista. Justamente porque o país não ultrapassa os limites comerciais e costuma aceitar as exigências das nações com que negocia.

“A China tem interesse no nosso mercado. Mas não vai forçar o Brasil a nada, nem a atender aos interesses do mercado chinês. A China não transforma sua força econômica em processos políticos, como os americanos fazem no Brasil até hoje, e, quando não dá certo, usam seu poder para forçar a fazer o que eles querem”, explica.

Ele também cita o exemplo da relação comercial estabelecida entre o gigante asiático e o Irã, que vai trocar petróleo por infraestrutura.

“Mais importante que isso é a tecnologia dessa infraestrutura que ficará com o Irã”, defende.

Em um vídeo específico sobre a questão (Existe Imperialismo Chinês?), pois não encontrei textos específicos dele sobre o tema, Jabbour afirma que, de acordo com Lênin, no imperialismo “a economia se submete à política” (1:20s), bem como seria “a utilização da economia para fins puramente políticos”. Um pouco depois, afirma (a partir de 2min) que o imperialismo é “parte da superestrutura do capitalismo (...) parte da superestrutura do capitalismo e não um fenômeno econômico como muitas vezes se transparece.” Afirma (por volta de 5 minutos) que esse debate se inicia, pois a China se torna, após a crise de 2008, o maior credor líquido externo do mundo, tendo investido no exterior 1.374 trilhão de dólares entre 2010 e 2020, principalmente nos setores de transporte e energia. O vídeo vai nesse sentido: o imperialismo não é um estágio de desenvolvimento do capitalismo; o imperialismo é a violência política e militar a qual apenas as potências capitalistas ocidentais utilizam; que as potências capitalistas ocidentais exigem a abertura da conta de capitais e a desregulamentação trabalhista e financeira como condição para investimentos externos, e a China, não; a China oferece empréstimos ou investimentos em energia e transportes, em troca de petróleo; etc.

A posição de Jabbour, na verdade, é a mesma de Karl Kautsky, criticada por Lênin justamente por limitar o imperialismo às suas expressões políticas, esquecendo sua base econômica (Imperialismo, p. 116/118):

A definição de Kautsky é a seguinte:

O imperialismo é um produto do capitalismo industrial altamente desenvolvido. Consiste na tendência de toda nação capitalista industrial a submeter ou anexar cada vez mais regiões agrárias [o itálico é de Kautsky], quaisquer que sejam as nações que as povoam.

(...)

A definição de Kautsky não só é incorreta e não marxista. Ela serve de base a um sistema inteiro de concepções que rompem em toda a linha com a teoria marxista e com a atuação prática marxista de que falaremos mais adiante. Carece absolutamente de seriedade a discussão de palavras levantadas por Kautsky: o patamar mais recente do capitalismo deveria ser denominado imperialismo ou patamar do capital financeiro? Denomine-se como quiser, é indiferente. O essencial é que Kautsky separa a política do imperialismo de sua economia, interpretando as anexações como a política “preferida” pelo capital financeiro, e contrapondo a ela outra política possível supostamente burguesa sobre a mesma base do capital financeiro. Conclui-se que os monopólios na economia são compatíveis com o modo de atuar não monopolista, não violento, não anexionista, na política. Conclui-se que a partilha territorial da Terra, finalizada precisamente na época do capital financeiro, e que serve de base para a peculiaridade das formas atuais de rivalidade entre os maiores Estados capitalistas, é compatível com uma política não imperialista. Disso resulta a dissimulação, o ocultamento, das contradições mais basilares do mais recente patamar do capitalismo, em vez da exposição de toda a sua profundidade; disso resulta o reformismo burguês, em vez do marxismo.

(...)

Kautsky objeta a Cunow: não, o imperialismo não é o capitalismo contemporâneo, mas apenas uma das formas de sua política; podemos e devemos lutar contra essa política, lutar contra o imperialismo, contra as anexações, etc.

A objeção, completamente plausível na aparência, equivale, na realidade, a uma defesa mais sutil, mais velada (e por isso mesmo mais perigosa) da conciliação com o imperialismo, pois uma “luta” contra a política dos trustes e dos bancos que deixe intactas as bases da economia de uns e outros não passa de reformismo e pacifismo burgueses, não vai além das boas e inofensivas intenções. Voltar as costas às contradições existentes, esquecer as mais importantes, em vez de as descobrir em toda sua profundidade: eis a teoria de Kautsky, o que nada tem a ver com o marxismo. (grifei)

Na verdade, Jabbour dá um passo à frente no sentido de que a expansão “não violenta” e “não política” do capital financeiro pelo mundo sequer é por ele chamada de imperialismo, agora trata-se do socialismo do século XXI e do desenvolvimento compartilhado.

Para falarmos brevemente dos aspectos políticos do imperialismo, que Lênin não pôde abordar livremente em razão da censura czarista, reforçamos que os aspectos não-econômicos do imperialismo não se resumem ao militarismo e às anexações, são também efetivados por meio da diplomacia, do comércio, da cultura, da imprensa, etc.

O Imperialismo, estágio superior do capitalismo, foi escrito por Lênin em 1916, mas publicado apenas em meados de 1917, de forma que seu conteúdo foi adaptado à censura czarista, pois o livro não foi reeditado para ser publicado após a revolução de fevereiro. Na página 23 (ed. Boitempo) Lênin coloca que:

Por isso, não só fui obrigado a me limitar de maneira mais rigorosa a uma análise exclusivamente teórica – sobretudo econômica -, mas ainda tive de formular as indispensáveis e pouco numerosas observações relativas à política com a maior prudência, valendo-me de alusões e da linguagem esópica – essa maldita linguagem esópica que o tsarismo obrigava todos os revolucionários a utilizar quando pegavam na pena com vistas a uma publicação “legal”.

Todavia, em outro trecho do mesmo prefácio diz que “Gostaria de ter esperança de que meu panfleto ajudará no entendimento de um problema econômico fundamental, sem cujo estudo não se pode compreender nada para uma avaliação da guerra e da política atuais, a saber: a questão da essência econômica do imperialismo” (idem, p. 24). No mesmo sentido, Lênin diz no segundo prefácio do livro, na página 32: “Sem ter compreendido as raízes econômicas desse fenômeno, sem ter avaliado a sua importância política e social, é impossível dar sequer um passo no terreno da resolução das tarefas práticas do movimento comunista e da revolução social vindoura.”

Lênin afirma, corretamente, que as raízes e a essência do imperialismo são econômicas, o que é perfeitamente condizente com o conteúdo de sua obra: para entender a partilha do mundo entre as grandes potências é preciso entender antes o desenvolvimento do capital monopolista, a fusão entre o capital bancário, industrial e comercial e o fenômeno da exportação de capitais a partir das associações de capitalistas.

As manifestações não-econômicas do imperialismo, que não se resumem à violência aberta, são uma determinação de seu conteúdo econômico. As guerras imperialistas, que têm um conteúdo específico de classe, não existem antes do desenvolvimento do capital financeiro e da exportação de capitais, ao contrário, são formas de expandir esse movimento em momentos de agudização de conflitos entre estados-potências capitalistas, no interesse de suas respectivas burguesias.

Os fatos de a disputa imperialista entre China e EUA, na atualidade, não ser travada no âmbito militar, de a China não dispor de 800 bases militares tal qual os Estados Unidos e de não fomentar golpes de Estado em países subalternos na cadeia imperialista, p. ex., significam apenas que a intervenção política chinesa não alcançou o patamar de intervenções militares diretas em zonas de seu interesse. Não significa que isso tem que acontecer ou não tem que acontecer. O Estado chinês, no interesse de defender sua burguesia, continua a investir em suas forças militares (abaixo de seu patamar na divisão do capital internacional, em cerca de 300 bilhões de dólares por ano, por volta de 1/3 do orçamento militar estadunidense) mas já conta com a maior força naval do mundo; continua a intervir diplomaticamente em alguns importantes conflitos mundiais, como na mediação entre Irã e Arábia Saudita, em 2023, e entre o Taliban e o Paquistão, em 2022/2023; trabalha para construir um sistema de movimentações financeiras global alternativo ao sistema SWIFT a partir dos BRICS; expande sua influência política a partir de um imenso esforço diplomático-econômico para construir sua Nova Rota da Seda; etc.

Descoladas de seu sentido de classe e do movimento dos respectivos capitais, é impossível entender a necessidade ou desnecessidade dessas intervenções culturais, diplomáticas e militares por parte das potências capitalistas atuais – reforçamos:

Não é por conta de sua particular maldade que os capitalistas dividem o mundo, mas porque o patamar de concentração a que se chegou os obriga a seguir esse caminho para obter lucros; com isso, dividem-no “segundo o capital”, “segundo a força”: qualquer outro método de divisão é impossível no sistema da produção mercantil e do capitalismo. A força varia, por sua vez, a depender do desenvolvimento econômico e político; para compreender o que está acontecendo é necessário saber que problemas são solucionados pelas mudanças da força, mas saber se essas mudanças são “puramente” econômicas ou extraeconômicas (por exemplo, militares) é secundário e em nada pode alterar a abordagem fundamental da época mais recente do capitalismo. Substituir a questão do conteúdo da luta e das transações entre os grupos capitalistas pela questão da forma dessa luta e dessas transações (hoje, pacífica, amanhã não pacífica, depois de amanhã, outra vez pacífica) significa rebaixar-se ao papel de sofista.

A época do capitalismo mais recente nos mostra que entre as associações de capitalistas estão tomando forma determinadas relações com base na partilha econômica do mundo, e ao lado disso, e em conexão com isso, entre as associações políticas, estatais, estão tomando forma determinadas relações com base na partilha territorial do mundo, na luta pelas colônias, na “luta pelo território econômico”. (Imperialismo, p. 99) (grifei)

Jabbour não é o único marxista (ou suposto) a adotar a visão de Kautsky sobre o imperialismo, limitando-o às suas expressões políticas, esse é também o caso de Claudio Katz, por exemplo, aludindo à suposta “prudência geopolítica” chinesa:

O imperialismo é uma política de dominação exercida pelos poderosos do planeta por meio de seus estados. Não constitui um estágio duradouro ou final do capitalismo. O escrito de Lênin esclarece o que aconteceu há 100 anos, mas não o curso dos eventos recentes. Ele foi criado em um ambiente muito distante, de guerras mundiais generalizadas.

(...)


As controvérsias sobre o status geopolítico da China se intensificaram. Sua apresentação como império é baseada em analogias errôneas, que ignoram como a expansão produtiva se alia à prudência geopolítica. O perfil imperialista é definido por ações internacionais de dominação, e não por parâmetros econômicos. (grifo nosso)

Cláudio Katz, China: tão distante do imperialismo quanto do sul global

Naturalmente, as tentativas de atualizar Lenin (Katz e Jabbour) e Marx (Jabbour e Gabriele) já partem de erros grosseiros na interpretação de suas obras. Lênin diz, com todas as letras, que para entender o caráter do conflito imperialista de sua época (primeira guerra mundial) é preciso entender, antes, os interesses das classes dominantes das potências beligerantes, ou seja, entender o conteúdo econômico expresso naquela forma política específica de conflito armado. Marx diz, com todas as letras, que não está estudando a sociedade inglesa do século XIX, mas a sociedade capitalista em geral e suas relações sociais necessárias, desnecessário repisar essa questão, cf. item 4.1.

Em ambos casos, não se parte da conjuntura para entender essas relações necessárias, mas, ao contrário, parte-se das relações sociais necessárias, do capitalismo e de seu desenvolvimento imperialista, para entender as nuances daquilo que não é necessário, que pode ou não ser de determinada maneira, ou seja, das expressões culturais, diplomáticas, políticas, militares, científicas, etc. do capitalismo e do imperialismo.

Como isso poderia ser diferente para pensar na “prudência geopolítica” chinesa? Não devemos pensar no que motiva essa, e não outra, postura por parte da potência capitalista chinesa?

Embora a restauração capitalista chinesa tenha se iniciado em 1978, a própria obra de Jabbour mostra que esse processo não correu sem variados percalços e levou décadas para se consolidar. Isso se verifica a partir dos dados levantados pelo ILAESE, que apresentam de forma clara o salto dado pela economia chinesa nos últimos 20 anos. Apenas em 2012 a China ultrapassou Reino Unido, França, Japão e Alemanha para se firmar como segunda potência capitalista do mundo, a partir da análise da receita líquida anual das 500 maiores empresas mundiais, por exemplo.

Isso significa que sua entrada definitiva nessa disputa se dá após cerca de 100 anos de dominação estadunidense e de suas intervenções militares, golpes de estado, etc. A partilha do mundo já estava realizada em 2012, o planeta já estava dividido, basicamente, entre empresas multinacionais dos Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Alemanha e França e seus respectivos Estados. As famigeradas 800 bases militares dos EUA já estavam lá, bem como a ocupação francesa nos países da África Ocidental, etc., tudo no sentido de garantir a continuidade da extração de mais-valor de trabalhadores de todo o planeta.

Apesar disso, o capital chinês se expandiu e continua a se expandir, como isso foi possível?

Será que nesse contexto em que os EUA já se consolidaram enquanto uma potência imperialista hegemônica que não tem pudor de se mostrar violenta, faria sentido para a China, desde sempre, enfrentar esse país militarmente, onde sua posição está consolidada? Não se mostra muito mais fácil aproveitar a justa animosidade do mundo com os EUA e se colocar como uma alternativa mais humana, preocupada com o “ganha-ganha”? A análise de Lênin, que toma o imperialismo como desenvolvimento do capitalismo, não precisa ser atualizada nesse aspecto justamente porque estabelece a conexão entre seu imprescindível conteúdo econômico e suas variadas formas, que em hipótese alguma precisam a todo momento ser intervenções militares diretas ou golpes de estado. A riqueza dessa análise está em nos permitir entender o movimento do capitalismo em sua fase imperialista e suas diferentes expressões, a partir do capital e das forças extraeconômicas das potências e, não em nos mostrar o contexto do mundo e da primeira guerra mundial em 1916, da mesma forma que a obra de Marx nos permite, enquanto existir capitalismo, entender seu movimento, e não entender o contexto do trabalho fabril na Inglaterra de meados do século XIX.

Se, por um lado, a China intervém diplomaticamente para normalizar relações diplomáticas entre Irã (país bastante sancionado pelos EUA) e Arábia Saudita, por outro o país realiza um acordo comercial de 25 anos com o país iraniano, a partir do qual as empresas chinesas fornecerão infraestrutura ao país (leia-se: capital chinês será exportado ao Irã) e a China obterá um fluxo seguro de petróleo. A mesma lógica se aplica à Arábia Saudita, maior parceira comercial chinesa no Oriente Médio.

Se, por um lado, o Estado chinês foi o primeiro a reconhecer um enviado do governo talibã afegão (não se trata de um reconhecimento do governo, por enquanto), enquanto os EUA consideram o Taliban organização terrorista, por outro lado já existem empresas chinesas explorando o petróleo e os minérios do país, com a possibilidade futura de integração à Nova Rota da Seda e um maior aporte de investimentos com a estabilização do governo.

A mesma lógica se aplica às relações diplomáticas entre China e Brasil, China e Rússia, China e Colômbia, China e Venezuela, etc. etc. etc.

O “marxismo-leninismo-keynesianismo” que criticamos, essa forma de oportunismo que, em verdade, é um mero requentamento de formulações de “marxistas” como Karl Kautsky, jamais será capaz de oferecer uma análise adequada do capitalismo em sua fase imperialista pois seu ponto de partida não é a análise crítica da sociedade capitalista, é a “ciência macroeconômica” burguesa, que parte da “moeda” (dinheiro) enquanto dogma não-explicado, que se baseia na possibilidade de, por meio de intervenções estatais, reformar e dar uma face mais humana ao capitalismo, “distribuir” a riqueza, “desenvolver” a sociedade, desde que sigamos suas prescrições e saibamos de cor que “o Estado não precisa arrecadar antes de gastar”, a despeito de o Estado ser um aparelho de violência burguesa contra a classe trabalhadora, a despeito de a arrecadação do Estado significar a expropriação da parca renda salarial dos trabalhadores e desses gastos, na verdade, servirem virtualmente apenas para resgatar a burguesia via emissão de títulos de dívida pública, terceirizações, subsídios, etc.

Não há movimento burguês sem teoria burguesa. Como não poderia deixar de ser, essa suposta ciência econômica está intimamente relacionada a uma política mistificadora que opõe os “setores reacionários” da burguesia brasileira a uma suposta burguesia nacionalista, que defende que a luta política se resume às disputas institucionais e eleitorais, que defende o teto de gastos de Haddad porque “era o que dava para o momento”, que enxerga a luta política como uma luta “entre a esquerda e o bolsonarismo”, etc.

Essa política oportunista parte de incompreensões básicas, por exemplo, acerca do significado do sistema financeiro (igualando sistema financeiro e especulação financeira, por exemplo), insiste em separar mecanicamente “uma burguesia da outra” em um momento tal em que a maioria das grandes empresas sediadas no Brasil ou multinacionais que aqui operam têm capital aberto e seus títulos negociados em bolsas de valores, ou seja, integraram-se à lógica do capital financeiro e da junção dos capitais industriais, bancários e comerciais. Os capitais do conjunto da classe capitalista estão diluídos por milhares de empresas no Brasil e no mundo, a taxa de lucro tende a se estabilizar entre os diferentes setores e fica cada vez mais difícil separar os interesses “de uma burguesia da outra”. Os setores da economia brasileira, dinâmicos ou não, estão plenamente financeirizados. O latifúndio, por exemplo, pode ser financiado por pelo menos 07 tipos diferentes de títulos de crédito (LCAs, CRCAs, FIAGROs, etc.) que poderão circular de forma independente dos ativos reais que representam. Pior ainda, os capitais da burguesia brasileira estão ligados e subordinados também aos capitais da burguesia estadunidense, europeia e, agora, cada vez mais, chinesa. Basta verificar a composição de grandes empresas brasileiras de capital aberto como a Petrobrás, Embraer e Vale, p. ex., (todas desenvolvidas a partir de investimento público e, posteriormente, privatizadas), com a maioria de acionistas estrangeiros e até com ações negociadas na bolsa de valores de Nova Iorque, a compra de empresas brasileiras por esses capitais e os investimentos externos diretos aqui realizados.

Não há espaço para a classe trabalhadora no “marxismo-leninismo-keynesianismo”, um “projeto de desenvolvimento nacional que ruma ao socialismo” que não é apenas de Elias Jabbour, mas de seu partido, o PCdoB, do qual é membro do comitê central (ao menos é o que consta do site do partido) e que se baseia no apelo à política institucional e a uma suposta burguesia desenvolvimentista que não existe e jamais existiu, ignorando os pressupostos básicos de formação e de reprodução do movimento do capital e do domínio dos capitalistas.

O melhor que Jabbour oferece, politicamente, é uma “crítica” desdentada e desarmada ao Partido dos Trabalhadores, uma vez que seu próprio partido está federado com o PT, ou seja, ambos agem como se apenas um para fins eleitorais. Em razão dessas distorções da política e economia, seria possível almejar por um futuro idílico em que a classe trabalhadora brasileira não precisasse lidar com o peso do imperialismo (independentemente das bandeiras das empresas) em suas costas (p. 134):

Até agora, as experiências de orientação socialista mais importantes e radicais originaram-se principalmente de revoluções violentas. Esse não tem necessariamente de ser o caso no futuro, uma vez que a correlação global de forças sob o metamodo de produção mudou com a presença relativamente estável da China etc. (grifo nosso)

Essa curiosa perspectiva pode ser vista em um corte de uma participação recente de Elias no podcast Flow, publicado em seu perfil no Instagram (transcrevi uma parte):

Eu não tenho nada contra a propriedade privada, não tenho nada contra o mercado, eu não sou anticapitalista, eu quero superar o capitalismo, eu quero que surjam outras formas de propriedade... quando a propriedade privada for incapaz de entregar o que a sociedade demanda dela vai ter que aparecer uma outra coisa, e eu sou comunista não é por uma questão religiosa, é porque eu acredito cientificamente que essa outra forma histórica que vai substituir o setor privado existe, mas enquanto o setor privado entrega pra sociedade o que demandam dele, deixa ele funcionar.

Sobre a China, as posições de Elias não são originais nem únicas, tampouco nossas críticas a esse suposto marxismo. Como bem colocou Ivan Pinheiro, há pouco mais de dois anos (Ainda sobre a chamada plataforma mundial antiimperialista), essa falsa e parcial visão acerca do imperialismo, sintetizada (não apenas) pelo agrupamento de partidos na chamada “Plataforma Mundial Anti-Imperialista”, repousa numa incompreensão sobre o caráter do imperialismo atual que pode muito bem desaguar em posições contrárias aos nossos interesses de classe:

Desta forma, a luta contra o imperialismo se resume à forma de seu exercício e não à sua natureza, trazendo assim a ilusão de que o lado pacífico das potências em disputa jamais recorrerá à força das suas armas, salvo para fins defensivos próprios ou por mera solidariedade humanitária a países mais fracos. Este antiimperialismo seletivo chega ao ponto de a recente Declaração de Seul da PMAI, aprovada pelas organizações presentes, esconder a contradição principal entre capital e trabalho e, desta forma, desarmar mundialmente o proletariado, ao declarar textualmente:

“A principal contradição do mundo de hoje é aquela entre o bloco imperialista da OTAN liderado pelos EUA e a massa da humanidade sofredora”.

Não negamos o sucesso do projeto de desenvolvimento capitalista chinês, que se aproveitou de suas condições específicas, como a “abundância de mão de obra” (uma grande quantidade de trabalhadores em relações de produção de autossubsistência) e de uma grande e pouco produtiva indústria de base pública, somada à conjuntura internacional favorável e à necessidade de expansão perene de capitais estrangeiros, para desenvolver sua própria agricultura, sua própria indústria e seu próprio sistema bancário de forma inteligente.

Entretanto, não pensamos que a questão se resuma ao nome socialismo ou ao nome capitalismo, mas à simples necessidade de que tenhamos critérios que permitam analisar o caráter de qualquer formação social de forma coerente, uma vez que a obra criticada, se utilizada para pensar outras formações sociais que não a chinesa, pode muito bem fazer um leitor incauto pensar que o Japão, a Alemanha ou até os Estados Unidos estão à beira da “transição socialista” a partir de recortes problemáticos da realidade. Pau que bate em Chico, bate em Francisco.

Em um nível mais básico, no livro de Jabbour e Gabriele não há qualquer crítica das abstrações produzidas pela sociedade capitalista como a generalização da forma mercadoria, da forma dinheiro, da forma capital, etc. Ao contrário, essas abstrações são utilizadas, a partir de teóricos burgueses/desenvolvimentistas, para propor uma teoria do desenvolvimento do “socialismo chinês” (capitalismo). É um receituário inspirado no processo de desenvolvimento dos EUA, como o próprio Elias diz, que não possui relação com a ditadura do proletariado, com o socialismo e com o comunismo, que não é um processo conduzido pelo proletariado organizado em classe que toma controle gradual do processo de produção de valores de uso, que transforma o caráter do processo de produção de forma consciente. Ao contrário, o proletariado chinês continua alheio ao planejamento econômico e ao controle do processo produtivo, numa forma política particular de ditadura burguesa conduzida pelo Partido Comunista que “coloca-se como um ator cuja ação vai ao encontro dos interesses do povo chinês” (p. 328), pois (idem)

 “ao contrário do que sugere certa visão superficial sobre a abrangência das interações de mercado –, a articulação holística das relações de produção e troca [!] sob o socialismo de mercado é profundamente diferente da do capitalismo, como deve ser claro para qualquer observador, desde que a análise seja feita em um nível adequado de profundidade”.

Por fim, após essa exposição, importante ressaltar que nossas resoluções são incongruentes ao tratar da China, reconhecendo seu papel destacado na cadeia imperialista global ao mesmo tempo em que afirmam o “caráter incompleto da restauração capitalista no país” e a “coexistência desse modo de produção com formas produtivas públicas e estatais (nas Resoluções de Estratégia e Táticas):

§25 É nesse sentido que, apesar do caráter incompleto da restauração capitalista no país e da coexistência desse modo de produção com formas produtivas públicas e estatais, a China hoje ocupa indubitavelmente um lugar destacado na cadeia imperialista global, em disputa contra o bloco EUA-UE, que passou a ser hegemônico no final do século XX e começo do XXI. Se mesmo antes dos anos 70 a República Popular da China deixava muito a desejar em termos de seu internacionalismo proletário, hoje seus interesses estatais internacionais são os da burguesia chinesa, de disputa contra as demais potências imperialistas por matérias-primas, força de trabalho e investimentos em outros países.

Creio que toda a exposição serviu de crítica a essa posição indecisa, no sentido de demonstrar que as disputas imperialistas (se entendemos o imperialismo a partir de Lênin) são expressão do desenvolvimento e da expansão do capitalismo em sua fase monopolista, cujas formas estão em estrita relação com o desenvolvimento econômico e político de cada país inserido nessa cadeia e não se devem à bondade ou maldade de alguns capitalistas. O capitalismo chinês não só está completamente restaurado como já amadureceu ao ponto de que os capitais chineses não encontram mais locais para sua aplicação produtiva na China e precisam se expandir, pois, como bem coloca Lênin, “Enquanto o capitalismo permanecer capitalismo, o excedente de capital dirige-se não à diminuição dos lucros dos capitalistas, mas ao aumento desses lucros por meio da exportação de capital para o estrangeiro, para os países atrasados.” (Imperialismo, estágio superior do capitalismo, p. 85/86).

Vejo que muitos camaradas são bastante influenciados por Elias Jabbour, Humberto Mattos (este agora devidamente filiado ao PCdoB), João Carvalho, etc., que ostentam, no principal, a teoria e a prática política que criticamos ao longo desse texto e cuja base teórica é, no mínimo, digna de pena (cf. o capítulo 2 do livro de Jabbour e Gabriele). Entre os apologetas e “indecisos” sobre a China, Jabbour pelo menos teve a coragem de colocar sua posição por escrito em seus livros e artigos que, por isso, podem e devem ser criticados. Jabbour se coloca como marxista, mas não o é. O marxismo não é um conjunto de textos, é um movimento político revolucionário calcado na impossibilidade de reformar o capitalismo, constatada a partir de uma análise criteriosa dessa forma de sociedade que identificou, já no século XIX, seus pressupostos de funcionamento, ou seja, nossa crítica ao capitalismo só faz sentido porque aponta para limites e contradições que lhe são inerentes e que, por isso mesmo, não serão superados com reformas que não ataquem seu núcleo, sua raiz.

Acreditamos que, ao longo do texto, ficou suficientemente demonstrado que essas relações sociais necessárias ao capitalismo, estruturais, estão a todo vapor na China, expandindo-se continuamente para dentro e fora do país, afetando, inclusive, nossa vida no Brasil por meio da compra do grosso dos produtos primários aqui produzidos e da exportação de seus capitais excedentes que foi, diga-se de passagem, muito bem relatada numa matéria recente de nosso jornal.

Dessa forma, espero que, no mínimo, esse texto sirva de reflexão e de estímulo à leitura crítica da obra de Jabbour e, principalmente, de estímulo ao estudo da crítica da economia política, uma necessidade urgente para superar as análises recortadas da realidade que, como no caso apresentado, desaguam em uma retratação ideológica do capitalismo como socialismo e rebaixam nossas tarefas políticas, enquanto comunistas, a uma posição de reboque em relação ao suposto desenvolvimentismo burguês.