'A César o que é de Deus: apontamentos sobre filiação democrática' (Stella)

Não se trata de “arrumar a casa primeiro”, […] mas sim de construir uma organização que consiga […] decidir sobre a filiação democrática ou […] qualquer […] assunto […] de forma nacional e não como algo específico para alguns lugares por acreditar que o tempo era favorável e não havia como esperar

'A César o que é de Deus: apontamentos sobre filiação democrática' (Stella)
Lê-se na legenda: "1945 - Os "Ciclopes" num comício do PCB, em Volta Redonda."

Por Stella para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas, frente às contribuições enriquecedoras (embora com um atraso prejudicial à nossa organização) dos nossos camaradas sobre a política eleitoral e as condições materiais para possíveis apoios às candidaturas e filiação democrática, quero propor um outro viés para o debate, de forma aprofundada, e ir nas vísceras da filiação democrática. Ressalto, inicialmente, três pontos sobre minha contribuição: 1) aqui faço uma correlação com as tribunas que foram enviadas e tratam especificamente sobre o tema das filiações democráticas, a qual não defendo; 2) me coloco a debater mais exclusivamente com a tribuna enviada pelo camarada Jones Manoel [1]; 3) que não defendo que devemos nos abster das eleições municipais de 2024.

Quando comecei a militar, ouvia as histórias sobre o Partido Comunista Brasileiro e sua inserção nas lutas dos operários na minha cidade, em Volta Redonda. Há, inclusive, registros da potência da célula que existia no interior da Companhia Siderúrgica Nacional, foto que coloco como capa dessa tribuna. Também ao ler sobre a história do Partido Comunista e sua atuação na região Sul fluminense, muito me deparei com o termo “filiação democrática” ou “entrismo” e, por isso, aqui estou para, de forma pedagógica e com o intuito único de incentivar outros camaradas a contribuírem, destacar alguns pontos históricos e táticos sobre a filiação democrática dentro da perspectiva da construção da nossa organização. Não tenho como fazer um debate detalhado, a tempo, sobre todas as experiências que tivemos em relação à filiação democrática e, por isso, separei algumas que podem nos ajudar a compreender e qualificar o debate.

Sobre a tática eleitoral do PCB, em Volta Redonda, na década de 50:

“Morel menciona que a Declaração de Março de 1958, elaborada pela cúpula do PCB “propunha que os comunistas estabelecessem um amplo movimento de alianças sociais e partidárias, fazendo uma auto-crítica em relação a sua atuação sindical anterior”(1). Santana aponta que nos anos 1950, após fase de radicalismo comunista, ocorreu aliança entre PCB e PTB para “se opor aos setores conservadores e conquistar a hegemonia da parcela mais importante e organizada do sindicalismo nacional”(2). Porém, Volta Redonda presenciou nesta mesma década à luta entre PTB e PCB pela direção do Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda. A conciliação entre os dois partidos parece ter se efetivado mais na esfera eleitoral. O Sr. Silvestre Pereira Rosa, comunista, é eleito pelo PTB em 1958, com 278 votos, para a legislatura de 1959 a 1962, após a emancipação de Volta Redonda. Ele foi o único comunista na Câmara na gestão, mas outro seria eleito na legislatura posterior (1963-1966), o Sr. Feliciano Eugênio Neto, desta vez pelo PSD, com 366 votos(3). Ele foi cassado em 1964, imediatamente após o golpe. Não estamos aqui nos propondo a fazer uma discussão sobre as oscilações internas das políticas do PCB, mas buscando evidenciar que sua prática eleitoral se tornou difusa, à medida que implicava o uso de diversas siglas partidárias. (...) Como já mencionamos, casos de candidatos do PCB que concorreram por outros partidos podem ser encontrados na região ainda na década de 1940. Mesmo antes da definição de uma estratégia de “entrismo”, Barra Mansa conhecerá seu primeiro vereador comunista, eleito pelo PSD: Henrique Manoel Ferreira (…).” [2]

Destaco essa parte em específico por um motivo: o trabalho que cito traz o depoimento de várias pessoas que não se recordam da atuação comunista em Volta Redonda. Uns dizem que quem era forte mesmo era o PTB; outros não recordam da atuação do Partido ou dos comunistas. Em outros casos, os depoimentos também ressaltam que, à época, todo e qualquer movimento em defesa da luta dos trabalhadores era tido como comunista, de forma abstrata e sem qualquer ganho político para o movimento comunista nacional.

O autor, que deixo nas referências ao final do texto, começa o capítulo explicando que a influência dos comunistas em Volta Redonda sofre, nesse período, duplamente: pela repressão direcionada ao Partido Comunista após o golpe de 1964, e pelos movimentos religiosos que tentam esvaziar a participação comunista nessa etapa histórica. Para concluir essas duas razões, ele ainda adiciona uma terceira:

“A memória local sobre o PCB e suas estratégias não foi influenciada somente pelos vitoriosos do golpe militar de 1964 ou pela ação da Igreja Católica posterior aos anos 1960, mas também pela própria estratégia eleitoral do Partido Comunista do Brasil. Como exemplo da estratégia multipartidária do PCB podemos citar o Sr. Henrique, na década de 1940; o Sr. Silvestre, na década de 1950 e o Sr. Feliciano, na década de 1960 como comunistas eleitos por outras legendas, fora aqueles que se candidataram sem sucesso. Essa situação provavelmente não era bem compreendida por todos os trabalhadores, principalmente os que não estivessem envolvidos com a questão sindical, nem com as questões políticas do local. Fica a impressão de que parte da herança de partidos como o PTB e PSD na região foi construída, na arena político-eleitoral, pelas mãos do PCB.” [2]

Houve, em Volta Redonda, nas décadas de 40, 50 e 60, um avanço na política eleitoral a partir dessas costuras. A conjuntura da época, no entanto, favoreceu e alavancou esse resultado, já que existia não apenas uma política eleitoral forte, mas a confluência desta com o trabalho sindical e a organização dos trabalhadores:

“Consideramos o resultado conseguido pelos comunistas nas eleições pós-1945 credenciam o PCB como um partido representativo da classe trabalhadora. A construção dessa representatividade se fez na atuação junto ao sindicato, desde sua criação, e junto aos trabalhadores de forma mais ampla. No entanto, como o partido só esteve na direção do Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda na década de 1950, consideramos que o sucesso eleitoral do partido no final da década de 1940 se deve em muito à atuação do Comitê Democrático Popular (CDP) de Volta Redonda.” [2]

Gostaria de destacar que não há, ou pelo menos eu não consegui achar, na história do movimento comunista brasileiro, nenhum balanço realizado sobre a filiação democrática em vários dos períodos históricos e localidades em que elas ocorreram, para além dos relatos históricos produzidos de forma científica. Não sou adepta da defesa rasa da história dos comunistas, mas mesmo se fosse e mesmo se houvesse respaldo na história sobre a repercussão dessa tática na construção das lutas dos brasileiros e sobretudo dos comunistas, ainda assim não concordaria que esse seria o caminho do partido que queremos construir em 2024. Os poucos relatos que pude acessar apontam para o seu caráter desqualificado enquanto incidência dos comunistas nas lutas e na sua eficácia apenas amparada no trabalho sindical e popular, muito expressivo à época. Quando dizemos que reivindicamos o movimento comunista brasileiro, não entendi que estaríamos também reivindicando seus erros.

Meu intuito não é, de longe, enterrar o debate, e estou aberta a ele e a ser convencida. Sei que uso de um artifício anacrônico e não é meu interesse sentenciar a filiação democrática a partir dessa única experiência, por óbvio, mas me parece essencial propor que esse balanço (e outros tantos necessários) seja realizado. Por isso, deixo a referência usada que, inclusive, cita outros escritos que tratam sobre as táticas do PCB à época a partir dos documentos históricos que conseguiram ser resgatados na região. O meu intuito aqui é dar um pontapé inicial no resgate da história do movimento comunista nos seus mínimos detalhes com o objetivo último de serem incorporados e traduzidos dentro da nossa linha política. Como este escrito que encontrei por querer conhecer mais da organização da classe trabalhadora na minha cidade, muitos outros devem existir. É nossa tarefa fazer esse balanço.

Minha trajetória militante e minha experiência no Rio de Janeiro, mas especificamente na cidade de Volta Redonda, me fazem convicta de que a filiação democrática, agora, é inverter o argumento e concordar que seria possível construir em meses uma diretiva nacional que poderia colocar em risco os possíveis ganhos para a classe trabalhadora que ainda estamos construindo junto com as lutas classistas nos Estados e Municípios. Concordo, muito em partes, que um quadro que consiga se eleger pode e deve fazer o enfrentamento, como muitos exemplos trazidos por Jones Manoel em sua tribuna, mas acreditar que é possível comparar a inserção das organizações desses militantes com a nossa, no atual estágio que nos encontramos, é comparar o incomparável. Entre o céu e a terra, a institucionalidade burguesa não me parecer ser um horizonte factual para o avançar da nossa incidência nas lutas no nosso atual momento. A pergunta que fica é: qual então, seria esse caminho?

O camarada Jones Manoel apontou, em sua tribuna, muitos desses caminhos. É um escrito realmente preocupado em como devemos atuar no processo eleitoral e por isso deve ser levado muito a sério. O camarada avançou imensamente no debate, como o faz em seu canal e redes sociais, detalhando formas de se fazer críticas, organizar mobilizações e debater, citando alguns dos pontos mais sensíveis para a conjuntura atual. Isso é inegável. Porém, vou me ater a um aspecto específico do texto: o camarada coloca que existe um desconhecimento sobre outras organizações por parte dos nossos militantes e dirigentes (acredito eu que a crítica tenha sido direcionada assim). Compreendo que isso sim, pode existir, dado às diferenças que existem entre as correntes e posicionamentos de seus militantes, mas fora isso, o que mais me assusta é o contrário: o total desconhecimento por parte de dirigentes dessas organizações no que se refere à nossa forma organizativa, arrumando pretexto de passar por cima das nossas direções enquanto chamam nossos quadros destacados no corredor para bilaterais informais. Isso sim é desconhecimento, ou pior, descompromisso com a construção de qualquer coisa e, por isso, concordo com o camarada Ivan Pinheiro em sua tribuna [3]. Outros pontos que destaco com alguma timidez para não deixar o texto muito longo: o otimismo com a atuação dentro do parlamento e a desconsideração com nossos militantes que, desde antes do racha, estão inseridos nas lutas das categorias que o camarada tanto apontou. A camarada Mari Nogueira é o maior exemplo que posso pensar rapidamente e, lembrando que a camarada recentemente se tornou mãe e mesmo assim não deixou de pautar não só a questão de sua categoria, como outras tantas e em todos os espaços em que esteve inserida. A camarada Mari é só um exemplo, mas temos outros militantes que estão nas ruas e nas redes, mesmo sem a mesma repercussão que grandes perfis têm, levando a cabo as pautas da nossa classe. Se estamos defasados nos debates sobre a conjuntura nacional (concordo que estamos e tenho o camarada Jones como um exemplo incansável de quem pauta a realidade brasileira na perspectiva da luta de classes), esse é um problema da nossa organização e sua gênese não foi o racha. Agora, pergunto: como construir uma organização que possa pautar a conjuntura nacional com a seriedade que o camarada Jones, de forma muito qualificada e séria, coloca? Estou convicta que é somente com a seriedade no avançar do nosso Congresso, assegurando a participação de toda a militância em suas respectivas etapas, que priorize um resultado que consiga formular para a classe trabalhadora levando em conta todas as suas opressões, e com uma política organizativa que consiga, apesar das condições materiais de todos os nossos militantes e não apenas alguns, desenvolver os quadros que serão os alicerces da incidência das lutas classistas, que conseguiremos avançar nesse sentido. Não vamos cair no erro de acreditar que o partido tenha como alterar a condição da reprodução social para alavancar os quadros que despontarem nas lutas; sejamos sinceros e acreditemos que a única forma de se fazer isso é seguir com o compromisso de formular para a classe trabalhadora como um todo.

Não é com uma proposta de filiação democrática que consiga (e se conseguir) sanar nossas debilidades táticas em um ou dois Estados que isso vai ser feito. Repito: histórica e idealmente, a filiação democrática existiu como uma tentativa de inserção da nossa linha programática na luta da classe trabalhadora, não como uma política feita às pressas e com a possibilidade material de se concretizar em apenas um caso específico; em condições favoráveis, os resultados não foram muito bons, o que poderemos esperar se adotarmos essa tática com as condições que estão dadas atualmente? Não se trata de “arrumar a casa primeiro”, expressão que desgosto muito por motivos óbvios, mas sim de construir uma organização que consiga, com a devida qualidade, decidir sobre a filiação democrática ou sobre qualquer outro assunto verdadeiramente de forma nacional e não como algo específico para alguns lugares por acreditar que o tempo era favorável e não havia como esperar. Não se trata de se abster das lutas e do período eleitoral; há uma necessidade gigantesca de estarmos preparados para 2024 se quisermos incidir na luta da classe trabalhadora a nível nacional, regional e local. A questão é como priorizar a nossa forma de inserção.

Camaradas, o que quero dizer aqui é que precisamos focar verdadeiramente na construção do partido comunista revolucionário, sem essa de prezar por qualquer pureza, mas por acreditar que apenas sendo reconhecidos como tal é que nosso apoio às candidaturas, quando houver, não representarão risco à nossa linha política.  A verdade é que o racha não furou nossa bolha; constantemente no interior preciso explicar mesmo aos militantes de outras organizações quem somos nós. Queremos, de verdade, empurrar nossos maiores e mais destacados quadros a outros partidos? Dada a experiência histórica sobre a memória dos comunistas em Volta Redonda, qual seria o ganho político em produzir ainda mais confusão ao eleitorado, sendo que poderíamos atuar, de maneira tática, no período eleitoral para agitarmos nossa linha política?

A longo prazo, e devido a enorme diferença entre cidades e Estados em todo país, quais são as costuras e as movimentações dos partidos que estamos dispostos a encorajar nossa militância a defender? E quando nem isso for possível, qual será a nossa resposta às bases, aos movimentos sociais e mobilizações que apoiamos e construímos? Eu não tenho disposição para defender o indefensável agora e creio que não terei tão logo, já que defender o que precisamos já é muito custoso e ainda estamos pagando essa conta.

A realidade é que muito avançamos desde o racha, e isso precisa ser reconhecido de forma categórica, mas ainda não temos fôlego nem para fazer o debate sobre as possibilidades da política eleitoral em muitas cidades em que estamos. O período eleitoral de 2024 nos aponta para a possibilidade de alterarmos esse quadro com a participação nas eleições com apoio às candidaturas nos diferenciando delas. Se isso não é reconhecer a realidade material, tenho muita dificuldade de aceitar o que seja, então. A prioridade deveria ser em qualificar, desenvolver e verdadeiramente construir nossa organização a ponto do debate eleitoral conseguir seguir com as especificidades necessárias de cada local e gerando acúmulos muito úteis para os nossos organismos, sem precisar picotar a nossa linha política mesmo antes dela ter sido colocada.

Tenho acompanhado com um misto de entusiasmo e preocupação o debate sobre as filiações democráticas, mas até o momento só conseguir ser totalmente convencida pela recente contribuição dos camaradas Ju Sieg e Vinícius Okada [4], sobretudo por seu caráter assertório, que inclusive coloca os pontos da nossa organização que estão sendo construídos e traz uma proposta nítida, simples e organizada de como realizar nossa participação nas eleições burguesas. Concordo com os pontos elencados pelos camaradas ao final da tribuna, com exceção do último, pois acredito que espaços de pré-campanha de outros partidos são geridos pela lógica das eleições burguesas e, por isso, não seria possível nos diferenciarmos da social-democracia por meio de critérios programáticos e de classe, como aponta a proposta, sendo inviável, acredito eu, nessas oportunidades, que consigamos de fato colocar luz sobre nosso próprio programa, e o que fica para a história é uma foto que ilustra o apoio, apenas.

Por fim, precisei recorrer ao uso de uma expressão que nada nos representa de maneira deturpada para nos lembrar: dentro dos limites da institucionalidade burguesa na atual conjuntura, não há qualquer partilha que nos contemple.


Referências:

[1] 'O “Partido Testemunho” e a nossa tática eleitoral' (Jones Manoel) https://emdefesadocomunismo.com.br/o-partido-testemunho-e-a-nossa-tatica-eleitoral/

[2] SILVA, Leonardo Ângelo da. Industrialização, relações de classe e participação política: da criação da CSN à emancipação de Volta Redonda (1941-1954). 2010. 162p Dissertação (Mestre em História). Instituto Multidisciplinar Curso de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2010.

(1) MOREL, Regina Lúcia de Moraes. A Ferro e Fogo – Construção e Crise da “Família Siderúrgica”: O caso de Volta Redonda (1941 –1988). Tese (Doutorado em Sociologia). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989, p. 347.

(2) SANTANA, Marco Aurélio. Homens partidos: comunistas e sindicatos no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001, p. 40.

(3) Câmara Municipal de Volta Redonda.Vereadores e Prefeitos de Volta Redonda: informações individuais. 1ª legislatura – 1955 à 7ª legislatura – 1977. Localização: Biblioteca Municipal Raul de Leoni. Caixa 8.

[3] Que tipo de Partido queremos construir?' (Ivan Pinheiro) https://emdefesadocomunismo.com.br/que-tipo-de-partido-queremos-construir/

[4] Questão eleitoral: quais são os fins e quais são os meios? (Ju Sieg e Vinícius Okada) https://emdefesadocomunismo.com.br/questao-eleitoral-quais-sao-os-fins-e-quais-sao-os-meios/