'A atuação dos comunistas nos territórios e o combate ao colonialismo' (Hakim)
É olhando para essas experiências de Poder Popular, de Palmares à Tainã, que podemos ver a crítica à colonialidade se transformando em ação prática, pois na defesa radical dos modos plurais de viver, existir, se relacionar com o tempo, a necessidade incontornável é o fim da sociedade capitalista.
Por Hakim para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.
Apresentação
Camaradas,
Durante todo o período pré-congressual, estudei sobre algumas temáticas e quis contribuir dentro delas, especialmente pensando na importância disso como delegado eleito pelo meu núcleo na Região Metropolitana de Campinas, e agora pelo Estado. Contudo, o somatório de uma alta carga de tarefas militantes, rotina de cuidados da minha casa, graduação e dois trabalhos me levaram quase ao ponto do esgotamento, que só me permitiu escrever essa contribuição que, se não se apresenta acabada com todo o esmero que eu gostaria (o que inclui a não adequação da linguagem à neutralidade de gênero, prática que procuro sempre manter), ao menos pode ser a fagulha dessa discussão que julgo ser central para os povos que habitam o território que convencionamos chamar de Brasil.
Antes de partir para a tribuna em si, gostaria de me apresentar brevemente, e justificar a escolha do pseudônimo. Alguns devem se lembrar de mim da etapa regional de São Paulo, onde estive representando o núcleo UNICAMP, e participando dos do GD de Movimento Negro, do qual muitas contribuições valorosas infelizmente se perderam pela sistematização. Sou um homem negro, nascido e criado na periferia de Campinas, e hoje estudo Ciência da Computação. Na militância, atuo no Centro Acadêmico do meu curso, o qual presido ao lado de independentes, e na prática da extensão popular, através do coletivo de engenharia popular que construímos, e do meu trabalho como bolsista na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da minha universidade. Adotei esse pseudônimo muito comum entre a comunidade hip hop, como forma de garantir minha segurança diante do mercado de trabalho da minha área, mas também de resgate étnico-cultural. Posto isso, vamos à tribuna.
O que é um território?
Durante a divisão dos GDs em temas, o camarada A.G, de meu núcleo, propôs alterar a organização dos temas. Naquele momento, dentre os vários grupos, haveriam, conforme [proposta do Machado](https://emdefesadocomunismo.com.br/propostas-para-a-metodologia-congressual-na-etapa-de-sp/):
1. Mov. Negro (B, C e D do Programa, RET§§65-68, RO 22-23)
2. Mov. indígena e questão agrária[2] (Programa B e D e RET §§93-101)
Cito aqui a defesa da supressão feita pelo camarada:
> Arthur (Unicamp): Não sou doido, estou fazendo isso por causa do método. Meu ponto é que precisamos debater movimento indígena, negro e agrário no mesmo ponto. Pensar em tudo isso é pensar num território. Temos que partir do ponto de território. Onde estão essas pessoas no Brasil? Precisamos de um debate qualitativo sobre território. Sabemos que quem está na frente desse combate são essas pessoas. Meu ponto de supressão é para que possamos apresentar a adição conjunta de todos esses debates num mesmo GD.
Em seguida na defesa da manutenção da divisão proposta, tivemos as seguintes falas:
> C.C (ZNO): Eu concordo com a questão central de discutir o movimento negro junto com a questão agrária, porém, devido ao método, não temos como debater isso aqui. A questão política é que não podemos reduzir as populações negras somente sobre a questão das terras, porque o debate não se resume a esses temas.
>
> P. (PUC São Paulo): Tem acordo com o camarada anterior e quer entender que totalidade é uma abstração. Se formos suprimir isso, vamos suprimir todas as pautas. Uma totalidade teria que ter questão urbana e questão rural, por exemplo. Temos que propor uma estratégia de atuação em relação a esses setores. O que o camarada propõe é válido, mas na conjuntura do congresso temos que aliar teoria à prática e não seria possível suprimir tudo sem uma análise qualificada disso.
>
> V. (Taubaté): O meu desacordo é histórico político. Pois reduzir o movimento indígena a esse debate, é reduzir o movimento indígena a um movimento autodeclarado, porém o movimento traz mais elementos.
Cito essas falas porque aqui já se escancaram diversas problemáticas do debate sobre territórios, especialmente quando este é feito por nossos camaradas brancos (e essa divisão racial se escancarou até no próprio momento da defesa). Ora, camaradas, as defesas apresentadas só fazem algum sentido se partirmos das premissa de que pessoas negras urbanas não possuem territórios. E essa premissa só se sustenta com uma definição pobre e superficial de territorialidade. É muito comum em nossos espaços partidários falas como a do camarada P., onde a erudição dialética se mostra (consciente ou inconscientemente) quase que como um instrumento retórico, em uma competição de quem é o mais materialista entre os materialistas.
Porém, tão concreto quanto um saco de cimento de 20 kg é a existência de espaços como a Casa de Cultura Tainã, quilombo urbano localizado na periferia de Campinas, território negro e indígena que se articula dentro da [Rede Mocambos](https://mocambos.net/tambor/pt), onde se conectam territórios quilombolas urbanos e rurais, assentamentos, comunidades ciganas, territórios indígenas, dentre outros. Em suas próprias palavras, na seção "Sobre" de seu site: "A Rede Mocambos é um movimento solidário que junta pessoas e comunidades quilombolas, indígenas, nartesans e artistas na busca de construir um mundo, mais do nosso jeito.". Embora esse exemplo não seja o foco da tribuna, espero em outros momentos conseguir escrever mais sobre o território e os debates levantados sobre soberania digital, software livre, cultura digital e extensão comunitária, influindo diretamente sobre a política de extensão da UNICAMP.
Cito nossos amigos da Tainã para expor uma impressão que tenho. Nossos militantes, mesmo os mais versados no marxismo-leninismo, ainda tem um olhar muito mecânico sobre a realidade nacional brasileira, quem são seu proletariado e povos oprimidos, e especialmente desconsidera a contribuição de pensadores indígenas, negros e quilombolas para entender o que é esse panelão cultural que taxamos de Brasil. Quando se trata de território, não estamos falando apenas de terra, e nem sequer apenas de local de moradia, como bem apontado por e camarada Veva em sua tribuna ['Qual o papel dos comunistas na luta pela terra e por território e por que nos recusamos a assumi-lo'](https://emdefesadocomunismo.com.br/qual-o-papel-dos-comunistas-na-luta-pela-terra-e-por-territorio-e-por-que-nos-recusamos-a-assumi-lo/):
> Ainda precisamos avançar muito em ambas as reflexões que se entrelaçam mutuamente. Afinal, **o poder popular é, antes de tudo, a capacidade que um dado povo alcançou, em dado processo histórico, de organizar seus modos de vidas e de existir em coletividade a partir do bem comum, dos interesses da maioria, do** _**bem viver**_, em termos usados por muitos povos indígenas do Brasil e da América Latina**.** E esse processo não escapa do território, antes disso, o constitui. Nessa reflexão que não é minha e me antecede em muito, territórios, mais do que áreas geográficas, são as próprias relações sociais, humanas e espirituais que se projetam no espaço.
Justamente buscando superar essa definição que para além da fraseologia militante se mostra pouco material e sem cientificidade é que buscamos sintetizar um definição de territorialidade e de como o Partido que pretende dirigir a revolução nesse país deve pensar o território:
> Adição em bloco Estratégia e tática:
>
> X.a) O Partido deve se inserir nas lutas dos povos não-brancos a partir da organização pelos seus territórios, compreendendo a suas características e dinâmicas como centrais para a confiança política e possibilidade da criação da frente de luta anticapitalista que inclua esses povos, sem deixar de lado a sua autonomia política.
>
> b) O Partido deve buscar construir o trabalho nesses territórios a partir da dialogicidade para a construção do Poder Popular.
>
> c) Compreendemos território como o conjunto histórico, político e cultural de um povo, que se constrói a partir de um espaço comum que participa da sua identidade. Essa relação não é meramente física, mas também da autoconstrução mútua entre a terra e esse povo.
Diante dessa definição, que pelo pouco (perto da trajetória secular de luta anticolonial nesse país) que aprendi, julgo ser uma definição que abarca bem a compreensão dessas relações e de como trabalhar a partir delas, fundamentado-nos (e aqui nos valemos da prática extensionista e de Paulo Freire) na dialogicidade, ou em bom português, na troca de saberes, aprendizado mútuo, uma relação que envolve sim conflitos mas também a construção de novos saberes entre sujeitos, no caso o partido (nós!) e os territórios. Convido portanto os camaradas que fizeram tais defesas na etapa estadual a reverem suas posições, e caso as mantenham, ainda desafio-os a mostrar como a luta do povo preto nas cidades não dialoga com a luta territorial.
O combate ao colonialismo
Quando falamos de colonialismo nos dias de hoje, a primeira reação de muitos marxistas-leninistas "puro-sangue" é a de torcer o nariz desconfiados, o que acredito ser um ranço presente entre nós pelos piores debates da decolonialidade que circulam na academia universitária. Contudo, apesar de uma tendência a enxergar o colonialismo como um estágio superado do capitalismo, a realidade material escancara sua atualidade e sua permanência em diversas esferas. Citando Fanon, em seu ensaio "Sobre a Violência":
> O mundo colonizado é um mundo dividido em dois. A linha divisória, a fronteira, está indicada pelos quartéis e pelos postos da polícia. Nas colónias, o interlocutor válido e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o polícia e o soldado. Nas sociedades de tipo capitalista, o ensino, religioso ou laico, a formação de princípios morais transmitidos de pais para filhos, a honestidade exemplar de trabalhadores condecorados após cinquenta anos de bons e leais serviços, o amor encorajado pela harmonia e pela prudência, essas formas estéticas do respeito à ordem estabelecida criam em redor do explorado uma atmosfera de submissão e de inibição que diminui consideràvelmente as forças da ordem. Nos países capitalistas, entre o explorado e o poder interpõe-se uma multidão de professores de moral, de conselheiros, de «desorientadores». Nas regiões coloniais, ao contrário, o polícia e o soldado, pelas suas intervenções directas e frequentes, mantêm o contacto com o colonizado e aconselham-no, com golpes de coronha ou incendiando as suas palhotas, que não faça qualquer movimento. O intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não mitiga a opressão, nem encobre mais o domínio. Expõe e manifesta esses sinais com a boa consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado.
Só me parece possível pensar que essa concepção é superada no solo onde pisamos, Abya Yala, rotulado pelo colonizador como Brasil, se não olharmos para o que acontece todos os dias nas favelas, nos quilombos, nas aldeias e nos terreiros, se ignorarmos a violência, repressão e exploração que sustentam esse Estado que, diante de estágios de modernização conservadora, jamais passou por uma ruptura em sua estrutura que encontra gênese no empreendimento colonial ibérico, na escravização e genocídio das populações nativas e no tráfico negreiro transatlântico. Haveria exemplo maior do que esse para nós quando Fanon diz que “o colonialismo não é uma máquina de pensar, não é um corpo dotado de razão. É a violência em estado de natureza”?
Na ponta de lança do enfrentamento à violência colonial, sempre estiveram os territórios. Sua disputa por soberania, autogestão e preservação dos seus modos de vida é perfeitamente sintetizada por ninguém mais do que o mestre-sala da libertação, Zumbi dos Palmares: "Vamos fazer o mundo mais do nosso jeito". Essa sociedade não nos basta e quer nos extinguir, e contra ela lutaremos, guiados por nossos ancestrais, orixás, voduns e nkisis.
E é olhando para essas experiências de Poder Popular, de Palmares à Tainã, que podemos ver a crítica à colonialidade se transformando em ação prática, pois na defesa radical dos modos plurais de viver, existir, se relacionar com o tempo, o espaço, consigo e com o outro, a necessidade incontornável é o fim da sociedade capitalista. E isso não é nenhuma novidade! Mas, por exemplo, quantos de nossos camaradas já ouviram falar e leram sobre a [Teia dos Povos](https://baobaxia.mocambos.net/#mocambos/cabruca/media/10a6dbcb-6aa3-4a34-956b-19a9968ec2f6) (e coloco aqui o panfleto de apresentação hospedado em um dos Data Centers Comunitários livres da Rede Mocambos) e a forma como entende a realidade brasileira e defende o socialismo, mesmo que para tecer críticas à sua estratégia?
Quando a Casa de Cultura Tainã mantém um datacenter gerido pelo território, usando de tecnologias livres e ferramentas desenvolvidas por eles próprios, isso é soberania digital. Hoje a Unicamp e a USP dependem da Google e seus serviços, eu e você alimentados as big techs com dados a todo momento, e mesmo o partido comunista tem toda sua estrutura comunicacional armazenada em datacenters completamente fora de seu próprio controle. Já a Tainã mais do que a resistência promove o enfrentamento ao colonialismo digital (conceito muito bem desenvolvido por Deivison Faustino em seu livro de mesmo nome), são hackers da periferia de Campinas usando o que tem a disposição de recursos para construir outro mundo em uma perspectiva afrocentrada.
Para concluir, camaradas, temos muito a aprender com essas experiências, se acreditamos que nos cabe responsabilidade de ser a vanguarda desse povo na construção da sociedade socialista. Essas matas são de Oxóssi, e essas ruas são de Exú, e como disse o[ camarada João Thiago](https://emdefesadocomunismo.com.br/salve-as-marias-salve-ze-o-que-e-ser-brasileiro-uma-discussao-sobre-brasilidades-e-memorias-ancestrais-sobre-territorios/), se os comunistas querem passar, devem pedir licença.