'A arte de falar muito e fazer pouco: a autocrítica transformando-se em perfumaria egocêntrica' (Mozi)

Ora, estamos passando por um momento de reorganização? Sim! Isso justifica, por exemplo, atropelar informes e minar o debate coletivo para aprovação de pautas específicas em um curto período de tempo? Obviamente que não!

'A arte de falar muito e fazer pouco: a autocrítica transformando-se em perfumaria egocêntrica' (Mozi)
"Reconhecer que, de fato, estamos inserides em um determinado contexto histórico, mas isso não nos dá o conforto da passividade que alguns acreditam ter – como o próprio velhinho barbudo dizia: não escolhemos o contexto em que vivemos, mas podemos tomar nossas próprias ações."

Por Mozi para a Tribuna de Debates Preparatória do XVII Congresso Extraordinário.

Camaradas, esta tribuna que escrevo não tem como horizonte a objetividade de encaminhamentos, mas sim reflexões que considero importante para todes que buscam construir genuinamente uma organização comunista.

Procurarei aqui demonstrar alguns antigos vícios presentes nas direções que disfarçam-se com verborragia para fugir daquilo que tanto dizem prezar: a autocrítica.

Vale destacar, antes de iniciarmos, que os comportamentos que citarei não são exclusivamente de camaradas em papel de direção, mas é explícita uma tendência de que camaradas com tais tarefas busquem argumentos fajutos para justificarem erros reconhecidos.  

1. Um breve contexto de minha perspectiva sobre as reflexões.

Quando comecei minha militância, no início de 2020, no núcleo da UJC no Vale do Paraíba, éramos um pequeno grupo de oito pessoas. Oito pessoas espalhadas por quatro cidades diferentes que, apesar de uma certa proximidade geográfica, possuem uma certa dificuldade de locomoção entre elas. Junto a isso, também tinha a pandemia que não permitia encontros presenciais e dificultava muito as poucas tarefas que conseguimos compor naquela época.

Começo com este contexto porque minha perspectiva sobre todas as reflexões a seguir se baseia nisso: na realidade de camaradas que construíram um núcleo do zero, quase sem nenhuma ajuda das direções estaduais, com camaradas pouco experientes mas, em compensação, com muita dedicação e humildade.

Reforço os primórdios da situação do tal complexo partidário na região do Vale do Paraíba porque, hoje, é completamente diferente: temos células e núcleos bem estabelecidos em várias cidades da região, todos com muites camaradas bem formades. Acredito que, até mesmo para quem sequer conhece a realidade da região, não é necessário dizer que essa presença estruturada tanto do Partido como da Juventude não surgiu da noite para o dia. Mas, então, como surgiu?

Cairia em muitos erros se tentasse resumir uma longa história em poucas linhas, mas tentarei sintetizar este avanço político-organizativo em um tópico que será detalhado a seguir: a autocrítica. Como disse, no início de nossa organização na região, não tínhamos experiência necessária para nos guiarmos por todos os obstáculos que enfrentamos, mas tivemos uma sensibilidade teórica e prática de reconhecermos nossos erros, tanto individuais quanto coletivos, e, na prática, aplicarmos as mudanças necessárias para corrigi-los.

2. O que é autocrítica e como devemos praticá-la?

Parece óbvio ter que afirmar que autocrítica é a capacidade de reconhecer ou mesmo fazer os próprios apontamentos de atitudes errôneas que cometemos e, então, corrigi-la através da práxis. Mas será mesmo que compreendemos o que isso significa?

Não é de hoje que venho observando, em algumas figuras que vem e vão nos papéis de direção (aqui, para manter o enquadramento argumentativo, falando especificamente da região do Vale do Paraíba), uma tendência de separar drasticamente o discurso da prática. No palanque em que são colocados, entendem perfeitamente a autocrítica; na prática, a compreendem como ataque pessoal e/ou uma tentativa de desestabilizar a unidade de ação.

Digo que compreendem dessa maneira porque realmente acredito que estão sendo honestos consigo mesmo – o que escancara ainda mais o vácuo formativo que certos quadros possuem neste critério. Aqui cabe um parêntese para observarmos que este comportamento costuma vir acompanhado de uma série de características que, para além do espaço organizativo, corrobora com esta distorção da realidade: esses camaradas em papel de direção que reproduzem o comportamento que citei, em sua grande maioria são homens cis, brancos e héteros. Aceitar essa informação sem compreender a carga de vícios atrelados a ela também faz parte de uma falha na formação política que visa a emancipação da classe trabalhadora.

Cabe a nós, então, um questionamento inevitável: como contornarmos isso? Não pretendo trazer soluções mágicas para o problema, logo como afirmei no início do texto, mas acredito que os caminhos a serem trilhados já estão postos em nossa frente, basta a consciência para caminharmos por eles. 1) Ampliarmos o escopo teórico de nossas formações, abandonando a noção simplória de que apenas Lenin e Marx importam 2) Reflexões e autocríticas verdadeiras sobre a imaturidade (e, por vezes também, a misoginia) que perpetuam a compreensão de crítica como ataque pessoal por parte de camaradas em papel de direção – e, em certos casos, para camaradas que não exercem tal papel também e 3) O abandono de desculpas pouco convincentes para desviar de críticas a erros incontestáveis, como falarei no próximo tópico.

3. As consequências da cisão e a necessária reorganização não são meras fraseologias. É necessário responsabilidade para com a organização!

Nos últimos meses temos ouvido, quase que de maneira automática, a mesma resposta para qualquer crítica que tecemos sobre nossa nova organização: "estamos passando por um momento de cisão!", "não há organização que nasça perfeita!", "estamos nos reorganizando!".

O interessante sobre essas desculpas é que, apesar de serem reconhecidamente frágeis ao refletirmos seriamente, elas não são mentiras. São verdades frágeis somente quando utilizadas por aqueles que fogem da autocrítica como o diabo foge da cruz, porque suas intenções não são genuínas – não há interesse algum em contextualizar os erros (sim, cometemos muitos erros!), mas apenas uma tentativa de fugir do debate.

Ora, estamos passando por um momento de reorganização? Sim! Isso justifica, por exemplo, atropelar informes e minar o debate coletivo para aprovação de pautas específicas em um curto período de tempo? Obviamente que não! Trago exemplos genéricos porque a reflexão não deve se prender a um acontecimento em específico, mas sim um acúmulo de ações que se retroalimentam em nossa organização – tanto a velha quanto a nova.

A cultura política, tanto enfrentada e criticada nos momentos de maior tensionamento durante a cisão, parece que encontrou um ambiente confortável para se perpetuar e se isentar das críticas – afinal, os erros nada mais são que consequências de nossa reestruturação e, se insistir na argumentação, torna-se ataque pessoal.

4. Não há necessidade para formalismos: a falta de camaradagem não pode ser perfumada por discursos performáticos!

Recentemente tive acesso a um documento de resposta para uma crítica feita a um camarada aqui na região, que me relembrou um acontecimento de alguns anos atrás, quando a possibilidade de um racha parecia inimaginável em nosso partido – ao menos, para a realidade em que estávamos presenciando aqui no Vale do Paraíba.

Tínhamos um grupo no WhatsApp com todes es militantes (e ex-militantes também) para conversarmos sobre qualquer coisa, exceto assuntos internos. Era uma época de transição em nossa região: não éramos mais uma organização pequena e já estávamos estabelecendo uma célula por aqui, para além de outros núcleos e coletivos. Em uma dessas conversas, sobre algumas movimentações populares que estavam acontecendo em São José dos Campos, dois militantes na época fizeram comentários racistas e classistas sobre a situação. Me lembro muito bem desse acontecimento pois foi a primeira vez em que fiz uma crítica dura para algum camarada – e também a primeira vez em que percebi que críticas sérias não eram bem recebidas em nossa antiga organização. Fui informada que me faltava paciência revolucionária, que minha crítica não continha uma pedagogia comunista para com os camaradas racistas. Essa paciência e pedagogia revolucionária, no entanto, nunca era exigido das críticas que partiam das direções que na época se formavam.

Apesar dos sinais existirem já naquela época, não presenciei tamanha falta de camaradagem como a que encontrei na tal resposta de uma crítica. E aqui o título do tópico faz muito sentido: os formalismos que uma resposta como essa exige estavam todos lá – Preciso chamar de camarada? Feito! Preciso agradecer a crítica recebida? Feito! Preciso escrever saudações marxistas-leninistas? Feito! Mas e a camaradagem genuína de ouvir e compreender o que foi dito? Aí é exigir demais, aparentemente. O conteúdo, para além das formalidades, foi apenas um reflexo de tudo que falei até então: compreendeu a crítica como ataque pessoal, fez malabarismos argumentativos para se certificar que desviou o foco de si mesmo, estabeleceu um tom paternalista e, para complementar o recheio textual, certificou-se de que cada parágrafo contivesse ao menos uma ironia passivo-agressiva para, em última instância, acusar qualquer crítica ao conteúdo como mera falta de compreensão do mesmo.

Mais uma vez: por que não citarei nomes? Porque, infelizmente, isso não é um acontecimento isolado. A figura de uma direção não reflete somente a si mesma, mas também reflete uma organização inteira que permite a propagação e manutenção de ações como essa. Portanto, a reflexão que fica não é quem escreveu tal documento, mas sim os motivos políticos e organizativos que permitem uma direção agir desta maneira.  

5. Qual partido devemos construir com os escombros da cisão?

Então, para finalizarmos, resta nos perguntarmos qual Partido queremos construir com os escombros que restaram da cisão. Não me alegra escrever nada do que escrevi acima, mas essa dor não pode silenciar-se com mais um afastamento, mais um desligamento. A máquina de moer militantes ainda persiste, e é nosso trabalho desligá-la de uma vez por todas.

Para isso, temos, claro, o caminho fácil: podemos colocar tudo na conta do contexto histórico e seguirmos em frente; podemos também retirar o peso de nossas costas e confrontarmos nossos erros como verdadeiramente devemos fazer: com honestidade e dedicação, sem escapes argumentativos. Reconhecer que, de fato, estamos inserides em um determinado contexto histórico, mas isso não nos dá o conforto da passividade que alguns acreditam ter – como o próprio velhinho barbudo dizia: não escolhemos o contexto em que vivemos, mas podemos tomar nossas próprias ações.

Por fim, finalizo com formalidades, mas também com muita camaradagem e carinho em minhas palavras, apesar delas terem sido duras em alguns momentos.

Saudações marxistas-leninistas.