37 anos do assassinato de Thomas Sankara: Passado e presente em Burkina Faso
Décadas após sua morte, o contexto atual, marcado pela ascensão de Ibrahim Traoré à presidência, traz à tona paralelos indevidos entre os dois líderes, indicando que seu legado ainda é central nas disputas pelo poder.
Por Redação
Neste 15 de outubro, Burkina Faso relembra pela 37ª vez o assassinato de Thomas Sankara, líder revolucionário que deixou um legado indelével na história do país. O contexto atual, marcado pela ascensão de Ibrahim Traoré à presidência, trouxe à tona paralelos entre os dois líderes, indicando que seu legado ainda é central nas disputas políticas pelo poder.
Refletindo a busca por uma identidade política que homenageie as ideias e ações de Sankara, enquanto enfrenta a crise de segurança deflagrada nos últimos anos, Traoré promete uma ruptura com o passado recente. O nacionalismo e o apelo à soberania num cenário regional volátil, contudo, não indicam qualquer pretensão de retirar a burguesia do poder em Burkina Faso, dando continuidade à exploração da classe trabalhadora e sua marginalização do poder, como mero espectador.
Em posição oposta, Thomas Sankara e seus aliados foram forjados numa conjuntura marcada por intensas mobilizações populares, poucos anos após a independência formal da ex-colônia de Alto Volta. Inúmeras greves e manifestações tomaram conta de Burkina Faso e outros países da África Ocidental em meio à crise política e econômica, refletindo os efeitos do neocolonialismo e da repressão aos trabalhadores.
Apesar de formado no ambiente reacionário das forças armadas, principal ferramenta de contenção aos movimentos revolucionários nas antigas colônias francesas, Sankara foi profundamente influenciado pelo marxismo-leninismo e as experiências socialistas. Naquela altura, as colônias portuguesas em África haviam sido libertadas após uma longa guerra liderada por movimentos guerrilheiros de orientação marxista, assim como o Vietnã havia saído como vencedor de uma guerra contra a maior potência militar do mundo. Profundo conhecedor de Lênin, o capitão do exército antagonizou com os setores direitistas no momento de efervescência da conjuntura em 1983, levando a sua prisão enquanto ocupava o cargo de primeiro-ministro.
A proximidade de Sankara com as massas trabalhadoras, bem como sua firme oposição aos elementos no poder naquele momento, levou a sua soltura e, por fim, a derrubada do regime em curso. Sankara e seus aliados, ao criarem os Centros de Defesa da Revolução e outros instrumentos de participação popular, realizavam um projeto político revolucionário com clara perspectiva de tirar o poder político da burguesia, principal aliada do imperialismo. Burkina Faso foi capaz não só de empreender diferentes feitos como a plantação de milhares de árvores nas áreas ameaçadas de desertificação, mas firmou compromissos de princípios revolucionários, como abolição de todas as restrições que existiam para contraceptivos e o reconhecimento da epidemia de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA ou AIDS na sigla em inglês) no continente africano.
Como noticiamos anteriormente, a ascensão dos grupos fundamentalistas na região do Sahel no final da década de 2010, levou a uma profunda crise de segurança que, somada à repressão aos protestos motivados pela crise econômica no país, causaram à queda de Blaise Campaoré, ex-aliado de Sankara e cumplice de seu assassinato em 1987.
As mobilizações de 2014, quando da queda de Camporé, contaram com a participação de movimentos sankaristas, notadamente o Le Balai Citoyen (‘A vassoura cidadã’), resgatando a posição ideológica do revolucionário. Essa posição de determinado setor das massas, somadas ao fato de que o laudo da autópsia de Thomas Sankara seria liberado após 27 anos, abriu novas perspectivas no debate burkinense. Em 2021, já comprovada a participação francesa no golpe e com a autópsia, abriu-se um julgamento que em 2022 condenou Blaise Campaoré, Hyacinthe Kafando e o general Gilbert Diendéré à prisão perpétua.
É em meio à essa conjuntura que Ibrahim Traoré e um grupo de membros das forças armadas de baixa patente se mobiliza para efetivar um golpe no interior do Movimento Patriótico para a Salvaguarda e Restauração (MPSR), que havia deposto Christian Kaboré em janeiro de 2022, passando a liderar a junta militar em voga no país.
Traoré, fazendo uso de elementos do discurso anti-imperialista de Sankara, conquistou parte considerável da população, rompendo as relações com a França e denunciando publicamente as intervenções do ocidente na região do Sahel ao somar forças com as lideranças em ascensão no Níger e Mali, governados também por juntas militares.
A reordenação da política externa de Burkina Faso levou à aproximação do país com a Rússia e o Grupo Wagner, tornando central a aquisição de equipamento militar e o treinamento dos soldados para enfrentar os grupos fundamentalistas. Ao mesmo tempo, o Fórum de Cooperação China-África (FOCAC) ocorrido em Pequim em setembro, elucida a aproximação cada vez mais contundente de Burkina Faso com os esforços da China no desenvolvimento da Belt and Road Initiative (BRI), também chamada de Nova Rota da Seda.
Mesmo assim, a ruptura dos laços entre a região do Sahel e a França pouco alterou a posição dos trabalhadores em Burkina Faso. Traoré aponta como prioridade a industrialização do país e o fim da dependência em determinados setores, um projeto político tocado pela junta militar que, contudo, tem como principal alicerce o apoio da burguesia e pequena-burguesia burkinense, bem como o investimento do capital estrangeiro dos novos aliados no campo geopolítico, nomeadamente Turquia, Catar, Arábia Saudita, Rússia e China.
Apesar das comparações entre Sankara e Traoré e das condições que levaram ambos ao poder político, grande parte das semelhanças terminam na forma. O conteúdo da proposta de ruptura com o passado de Traoré, apesar de ser frontalmente oposta ao neoliberalismo colocado em prática por Campaoré e seus numerosos sucessores, não é um projeto revolucionário que prioriza a classe trabalhadora burkinense, como foi a revolução de 1983, onde a participação popular foi ponto nevrálgico do processo de rompimento com o neocolonialismo.
Notadamente, a presença dos grupos fundamentalistas criou um panorama de extrema vulnerabilidade aos burkinenses, principalmente na região norte do país, ocasionando em mais de 2 milhões de deslocados internos. É nesse sentido que a oposição ao governo de transição adotado é vista por uma parcela considerável das massas trabalhadoras, como fora de cogitação, apesar das limitações democráticas impostas nos últimos anos.
Nesta toada, medidas que transitam entre as pastas ministeriais e a Assembleia Legislativa de Transição, como a criminalização da homossexualidade, anunciada pelo Ministro da Justiça Edasso Rodrigue Bayala após uma reunião do Conselho de Ministros, que contou com a participação de Traoré, é sinal da manutenção das forças reacionárias no poder.