37 anos do assassinato de Thomas Sankara: Passado e presente em Burkina Faso

Décadas após sua morte, o contexto atual, marcado pela ascensão de Ibrahim Traoré à presidência, traz à tona paralelos indevidos entre os dois líderes, indicando que seu legado ainda é central nas disputas pelo poder.

37 anos do assassinato de Thomas Sankara: Passado e presente em Burkina Faso
Thomas Sankara, presidente de Burkina Faso, em visita oficial de François Mitterrand, presidente francês a Ouagadougou, Burkina Faso, em 18 de novembro de 1986.

Por Redação

Neste 15 de outubro, Burkina Faso relembra pela 37ª vez o assassinato de Thomas Sankara, líder revolucionário que deixou um legado indelével na história do país. O contexto atual, marcado pela ascensão de Ibrahim Traoré à presidência, trouxe à tona paralelos entre os dois líderes, indicando que seu legado ainda é central nas disputas políticas pelo poder.

Refletindo a busca por uma identidade política que homenageie as ideias e ações de Sankara, enquanto enfrenta a crise de segurança deflagrada nos últimos anos, Traoré promete uma ruptura com o passado recente. O nacionalismo e o apelo à soberania num cenário regional volátil, contudo, não indicam qualquer pretensão de retirar a burguesia do poder em Burkina Faso, dando continuidade à exploração da classe trabalhadora e sua marginalização do poder, como mero espectador.

Em posição oposta, Thomas Sankara e seus aliados foram forjados numa conjuntura marcada por intensas mobilizações populares, poucos anos após a independência formal da ex-colônia de Alto Volta. Inúmeras greves e manifestações tomaram conta de Burkina Faso e outros países da África Ocidental em meio à crise política e econômica, refletindo os efeitos do neocolonialismo e da repressão aos trabalhadores.

Apesar de formado no ambiente reacionário das forças armadas, principal ferramenta de contenção aos movimentos revolucionários nas antigas colônias francesas, Sankara foi profundamente influenciado pelo marxismo-leninismo e as experiências socialistas. Naquela altura, as colônias portuguesas em África haviam sido libertadas após uma longa guerra liderada por movimentos guerrilheiros de orientação marxista, assim como o Vietnã havia saído como vencedor de uma guerra contra a maior potência militar do mundo. Profundo conhecedor de Lênin, o capitão do exército antagonizou com os setores direitistas no momento de efervescência da conjuntura em 1983, levando a sua prisão enquanto ocupava o cargo de primeiro-ministro.

Thomas Sankara ao lado de ministras e funcionárias do Estado. Em seu governo, Sankara promoveu extensa participação de mulheres nos quadros de funcionários, pondo em prática também a igualdade salarial entre os gêneros.

A proximidade de Sankara com as massas trabalhadoras, bem como sua firme oposição aos elementos no poder naquele momento, levou a sua soltura e, por fim, a derrubada do regime em curso. Sankara e seus aliados, ao criarem os Centros de Defesa da Revolução e outros instrumentos de participação popular, realizavam um projeto político revolucionário com clara perspectiva de tirar o poder político da burguesia, principal aliada do imperialismo. Burkina Faso foi capaz não só de empreender diferentes feitos como a plantação de milhares de árvores nas áreas ameaçadas de desertificação, mas firmou compromissos de princípios revolucionários, como abolição de todas as restrições que existiam para contraceptivos e o reconhecimento da epidemia de Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA ou AIDS na sigla em inglês) no continente africano.

Como noticiamos anteriormente, a ascensão dos grupos fundamentalistas na região do Sahel no final da década de 2010, levou a uma profunda crise de segurança que, somada à repressão aos protestos motivados pela crise econômica no país, causaram à queda de Blaise Campaoré, ex-aliado de Sankara e cumplice de seu assassinato em 1987.

As mobilizações de 2014, quando da queda de Camporé, contaram com a participação de movimentos sankaristas, notadamente o Le Balai Citoyen (‘A vassoura cidadã’), resgatando a posição ideológica do revolucionário. Essa posição de determinado setor das massas, somadas ao fato de que o laudo da autópsia de Thomas Sankara seria liberado após 27 anos, abriu novas perspectivas no debate burkinense. Em 2021, já comprovada a participação francesa no golpe e com a autópsia, abriu-se um julgamento que em 2022 condenou Blaise Campaoré, Hyacinthe Kafando e o general Gilbert Diendéré à prisão perpétua.

É em meio à essa conjuntura que Ibrahim Traoré e um grupo de membros das forças armadas de baixa patente se mobiliza para efetivar um golpe no interior do Movimento Patriótico para a Salvaguarda e Restauração (MPSR), que havia deposto Christian Kaboré em janeiro de 2022, passando a liderar a junta militar em voga no país.

Traoré, fazendo uso de elementos do discurso anti-imperialista de Sankara, conquistou parte considerável da população, rompendo as relações com a França e denunciando publicamente as intervenções do ocidente na região do Sahel ao somar forças com as lideranças em ascensão no Níger e Mali, governados também por juntas militares.

A reordenação da política externa de Burkina Faso levou à aproximação do país com a Rússia e o Grupo Wagner, tornando central a aquisição de equipamento militar e o treinamento dos soldados para enfrentar os grupos fundamentalistas. Ao mesmo tempo, o Fórum de Cooperação China-África (FOCAC) ocorrido em Pequim em setembro, elucida a aproximação cada vez mais contundente de Burkina Faso com os esforços da China no desenvolvimento da Belt and Road Initiative (BRI), também chamada de Nova Rota da Seda.

Ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação Regional, Karamoko Jean Marie Traore em conferência sobre oportunidades de investimento à empresários chineses, realizada na Embaixada de Burkina Faso em Pequim em 2 de setembro de 2024. Reprodução: Burkina 24.

Mesmo assim, a ruptura dos laços entre a região do Sahel e a França pouco alterou a posição dos trabalhadores em Burkina Faso. Traoré aponta como prioridade a industrialização do país e o fim da dependência em determinados setores, um projeto político tocado pela junta militar que, contudo, tem como principal alicerce o apoio da burguesia e pequena-burguesia burkinense, bem como o investimento do capital estrangeiro dos novos aliados no campo geopolítico, nomeadamente Turquia, Catar, Arábia Saudita, Rússia e China.

Apesar das comparações entre Sankara e Traoré e das condições que levaram ambos ao poder político, grande parte das semelhanças terminam na forma. O conteúdo da proposta de ruptura com o passado de Traoré, apesar de ser frontalmente oposta ao neoliberalismo colocado em prática por Campaoré e seus numerosos sucessores, não é um projeto revolucionário que prioriza a classe trabalhadora burkinense, como foi a revolução de 1983, onde a participação popular foi ponto nevrálgico do processo de rompimento com o neocolonialismo.

Notadamente, a presença dos grupos fundamentalistas criou um panorama de extrema vulnerabilidade aos burkinenses, principalmente na região norte do país, ocasionando em mais de 2 milhões de deslocados internos. É nesse sentido que a oposição ao governo de transição adotado é vista por uma parcela considerável das massas trabalhadoras, como fora de cogitação, apesar das limitações democráticas impostas nos últimos anos.

Nesta toada, medidas que transitam entre as pastas ministeriais e a Assembleia Legislativa de Transição, como a criminalização da homossexualidade, anunciada pelo Ministro da Justiça Edasso Rodrigue Bayala após uma reunião do Conselho de Ministros, que contou com a participação de Traoré, é sinal da manutenção das forças reacionárias no poder.